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Estado de Minas MÚSICA

O disco que não foi feito para ganhar dinheiro nem para conquistar namorada

'Síntese do lance', primeiro álbum conjunto de Jards Macalé e João Donato, que sai nesta sexta-feira (22/10), é 'um caleidoscópio sonoro que alivia tensões'


22/10/2021 04:00 - atualizado 22/10/2021 07:22

João Donato e Jards Macalé vestem meias coloridas, calção e roupão preto, que abrem, mostrando o corpo
João Donato diz que o disco com Jards Macalé é música 'feita com a garantia dos melhores ingredientes e das melhores intenções. Não foi feita para ganhar dinheiro nem para conquistar namorada' (foto: Leo Aversa/Divulgação)
Constrangedor. Foi a palavra que pairou – muito mais a palavra do que o sentimento – entre João Donato e Jards Macalé, quando esses dois senhores, de 87 e 78 anos, respectivamente, foram convencidos pelas próprias esposas a posarem nus para as fotos de divulgação e para a capa do disco “Síntese do lance”, que gravaram juntos e que será lançado nesta sexta-feira (22/10). 

“Quando a gente foi gravar o disco lá em Araras (SP), no estúdio da (gravadora) Rocinante, elas resolveram que a foto do disco seria com nós dois pelados. O Jards falou: ‘Constrangedor’. Tiramos as fotos no meio do mato. Não é uma coisa feia, imoral, tem uma inocência de bebê, que anda nu e ninguém repara”, diz Donato.

Admirador desde a mais tenra infância e agora parceiro de Donato, Macalé endossa a história – com um pequeno ajuste –, revelando o espírito que guia esse trabalho, que une, pela primeira vez, esses dois pilares da MPB. 

“A mulher do João teve essa ideia fantástica. Ficamos pelados no meio do mato, o João ficava falando: ‘Constrangedor’. Mas nos enfiamos ali no maior despojamento. É isso, essa foto é o despojamento de dois criadores de música, que fizeram juntos um disco que é uma trégua no meio dessa loucura, sem pretensão alguma de ser algo extraordinário, só uma manifestação de dois músicos no meio dessa confusão”, diz.

Com efeito, o encontro entre os dois artistas, proposto pelos sócios da gravadora Rocinante – Sylvio Fraga, Pepê Monnerat e Marlon Sette, que também são músicos e participaram das gravações – resultou num álbum vibrante, “um caleidoscópio sonoro que alivia tensões”, nas palavras de Macalé, que induz felicidade. Ele diz que isso não foi algo planejado, para que o disco soasse como antídoto contra estes tempos difíceis; foi apenas uma expressão genuína da felicidade do encontro.

RECREIO

“A música correu fácil. Acho que isso estava dentro da gente, essa necessidade de dar uma aliviada nas tensões. Eu brincava: Ah, que bom, é hora do recreio. É um disco que dá uma injeção de endorfina, dá um empurrão na felicidade, que está presente nos ritmos, nas melodias”, diz Macalé, chamando a atenção para o fato de que a música de abertura, “Coco táxi”, começa com o grito “Alegria” – sentimento que as demais faixas sustentam ao longo de todo o álbum.

 

 

 

Um dos singles lançados para anunciar o disco, “Coco táxi” é a única música do repertório de “Síntese do lance” efetivamente feita a quatro mãos por Donato e Macalé. Em diferentes momentos, eles já andaram no coco táxi, um triciclo envolto por um grande coco, pitoresco meio de transporte usado por turistas em Havana, Cuba. 

“É um veículo inseguro. A cada esquina parece que ele vai virar”, diverte-se Macalé, que identifica na música um saboroso “balanço cubano latino-americano”. As outras nove faixas foram criadas separadamente.

Macalé compôs, sozinho, “João Duke” (homenagem instrumental que aproxima João Donato e Duke Ellington) e “Lídice”; ao lado de Joyce Moreno, ele assina “Um abraço no João”; e com Ronaldo Bastos apresenta “O amor vem da paz”, que celebra uma década de união com sua mulher, Rejane Zilles. 

Já Donato responde pela faixa-título, que fez em parceria com Marlon Sette, também coautor, juntamente com Sylvio Fraga, de “Caruru” e de “Açafrão”. Assim como o carioca Macalé, o pianista acriano presta uma homenagem à sua esposa, Ivone Belém, com quem vive há 22 anos, com a faixa “Dona Castorina”.

''Gosto de Jards há muito tempo. Quando nos encontramos, ele me disse que gostava de mim há muito tempo. Só não tinha acontecido ainda a oportunidade de nos dizermos isso. Dolores Duran, que foi minha noiva, e Vinicius de Moraes, que foi muito meu amigo, não tivemos a chance de fazer nada juntos, porque não deu tempo. Com Jards deu, fizemos esse disco e estamos lançando porque gostamos''

João Donato, cantor e compositor


ADMIRAÇÃO MÚTUA

Donato, que diz estar num momento de muito interesse pelos textos bíblicos, observa que o alto astral que perpassa “Síntese do lance” é uma extensão do que os autores da obra sentiram a partir do convite dos diretores da Rocinante para gravarem juntos. 

“Quando me fizeram essa proposta, eu pulei da cadeira, porque gosto de Jards há muito tempo. Quando nos encontramos, ele me disse que gostava de mim há muito tempo. Só não tinha acontecido ainda a oportunidade de nos dizermos isso. Dolores Duran, que foi minha noiva, e Vinicius de Moraes, que foi muito meu amigo, não tivemos a chance de fazer nada juntos, porque não deu tempo. Com Jards deu, fizemos esse disco e estamos lançando porque gostamos”, afirma.

Macalé, por sua vez, exprime com a mesma ênfase a felicidade de poder dividir um projeto com Donato. “Sou fã desde criancinha. Quando comecei a perseguir a música, ali na década de 60, ele foi um dos que caíram na minha preferência direto. Tocando com ele agora, me lembrei de que naquela época tinha quatro ‘jotas’ que eu adorava e ainda adoro, meus mestres, Johnny Alf, João Gilberto, Jobim e João Donato. Fui muito amigo dos três primeiros, Donato era quem faltava na minha coleção de amizades, e a gente se aproximou muito naturalmente, através do humor também. Música e humor neste cenário atual salvam”, diz.

Segundo Donato, “a música pode ser divina em certas ocasiões”. Ainda sobre o papel da música, ele diz: “Não quero comparar minha música com a de ninguém, mas tem muita música por aí que faz mal. E a nossa é feita com a garantia dos melhores ingredientes e das melhores intenções. Não foi feita para ganhar dinheiro nem para conquistar namorada. Na ‘Bíblia’, tem várias páginas dedicadas à música, o Dizzy Gillespie, que conheci por meio do Lalo Schifrin, foi quem me abriu os olhos para isso, me mostrou o salmo de Davi, os cânticos de Salomão, são todos dedicados aos músicos”, aponta.

Para explicar melhor o propósito e o modo de feitura de “Síntese do lance”, Donato recorre à faixa “Coco táxi”. “Ela e outras tantas do disco não querem dizer nada, mas não ofendem ninguém, têm mais inocência do que intenção. A música cubana tem muito disso, elas não querem dizer nada, são músicas que você ouve como se fosse uma historinha para criança, uma parlenda. Acho isso bonito.”

Ele aproveita a deixa para falar mais do povo e da música de Cuba, cujos elementos sempre estiveram presentes em sua obra. “O povo cubano é feliz o tempo todo, 24 horas por dia, e sem que haja motivo para isso, porque eles não têm dinheiro, não têm comida, não têm nada, só têm a música, que é das coisas que estão mais perto do céu. A gente pede muita coisa, em vez de agradecer o que já nos foi dado. Comecei a ser mais feliz quando deixei de querer tanta coisa. Estar vivo já é de bom tamanho, porque, com certeza, alguém acabou de morrer ainda agora há pouco. Se você não se diverte, você perdeu sua viagem da vida.”

''Quando comecei a perseguir a música, ali na década de 60, ele (João Donato) foi um dos que caíram na minha preferência direto. Tocando com ele agora, me lembrei de que naquela época tinha quatro 'jotas' que eu adorava e ainda adoro, meus mestres, Johnny Alf, João Gilberto, Jobim e João Donato. Fui muito amigo dos três primeiros, Donato era quem faltava na minha coleção de amizades''

Jards Macalé, cantor e compositor


TRIBUTO

A existência de “Síntese do lance” – título que alude tanto ao exercício de extrair o néctar e chegar ao âmago quanto ao fato de condensar todas as referências musicais que a dupla cultivou ao longo da vida – se deve, em parte, a um outro álbum, que deve ser lançado em breve pela Rocinante, em que Macalé interpreta a obra de Zé Keti. 

Queríamos gravar um disco com o Donato e tínhamos acabado de gravar um com o Jards prestando tributo ao Zé Kéti. Um dia, deu um estalo e imaginei os dois compondo, tocando e cantando juntos. Eles toparam na hora”, conta Sylvio Fraga.

O projeto do álbum em homenagem a Zé Keti surgiu a partir de um aceno de Sergio Krakowski, percussionista brasileiro radicado em Nova York, que convidou Macalé para cantar esse repertório acompanhado por seu trio. 

“Esse convite veio há três anos. Agora, por conta do centenário, Zé Keti até está em evidência, mas naquele momento ninguém falava dele aqui no Brasil, por isso me interessei e acabei indo trabalhar esse repertório nos Estados Unidos”, diz Macalé.

“BÍBLIA”

Na conversa com a reportagem, Donato começou falando de seu crescente interesse pela “Bíblia” e avisou que não ia se prolongar no tema para “não parecer pregação”. Não é um interesse excludente ou redutor, conforme ele aponta. Prova disso é que a faixa-título do álbum tem uma célula rítmica que parte de um ponto de umbanda da entidade Zé Pelintra.

“O Marlon (Sette), que foi quem dirigiu as gravações, gostou de imediato, adorou o refrão, que diz: ‘É no morro, sim, / que se tira uma onda / é sentado na pedra queimando uma coisa / jogando uma ronda’. Depois eu falei que era um ponto de macumba do Zé Pelintra. É um negócio tão bom quanto um hino da igreja. O ‘Síntese do lance’ é isso também, não ter preconceito, não se importar se a música é branca, preta, se é de umbanda, de quimbanda, católica ou evangélica”, aponta Donato.

Ainda sobre seu interesse pelas Sagradas Escrituras, ele diz: “Passei a ler a ‘Bíblia’ mais, então não vou dizer que é sem razão que estou melhorando. Ela aconselha a gente de uma maneira tão feliz. Tudo o que você lê ali faz um bem de pensamento, de ação, de atitude, de sentimento e de saúde também, a gente fica mais sadio, quase mais santo, porque ‘são’ tem a ver com uma coisa e com outra. É muito bom quando a gente começa a se encontrar com as palavras de Deus, elas vêm refrescar nossas lembranças, a gente deixa de sofrer tanto, de pensar tanto, fica tudo bem mais fácil. Foi assim que me entendi nas páginas da ‘Bíblia’”.

“Síntese do lance”

• João Donato e Jards Macalé
• Rocinante (10 faixas)
• Lançamento nesta sexta-feira (22/10)


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