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Estado de Minas CINEMA

Filme 'Bagdá vive em mim' aborda o drama da diáspora iraquiana

Dirigido pelo cineasta exilado Samir, longa mostra traumas e desafios enfrentados por imigrantes que transformam café londrino em refúgio


02/09/2021 04:00 - atualizado 02/09/2021 07:12


O Café Abu Nawas, em Londres, é o refúgio de iraquianos que já não têm mais lugar em seu país
O Café Abu Nawas, em Londres, é o refúgio de iraquianos que já não têm mais lugar em seu país (foto: Fotos: Arteplex Filmes/divulgação)

Bagdá vive em mim ”, filme de Samir Jamal Aldin , retrata um grupo de imigrantes iraquianos que convivem em um café londrino buscando preservar sua cultura em meio a valores ocidentais. Cada personagem, que teve o seu motivo para abandonar o país, precisa lidar com fantasmas do passado para seguir em frente. No entanto, o ataque cometido por um islamita radical transforma a vida daquela comunidade.

Estreia desta quinta-feira (2/09) no Una Cine Belas Artes , em Belo Horizonte, “Bagdá vive em mim” aborda ateísmo, machismo e homofobia – tabus da sociedade árabe –, mesclando política, romance e drama.

SADDAM 

A narrativa é conduzida pelo poeta Taufiq (Haitham Abdel-Razzaq), que ganha a vida como guarda-noturno na capital da Inglaterra. Aos poucos, vamos descobrindo a tragédia que o levou à Europa. Comunista e refratário ao fundamentalismo islâmico, Taufiq foi perseguido pelo regime de Saddam Hussein nos anos 1990. Não escapou ileso para Londres, pois o irmão e a noiva foram assassinados pela ditadura iraquiana.

As lembranças atormentam Taufiq, que se sente culpado e tenta superar o passado ao lado dos conterrâneos frequentadores do Café Abu Nawas, ponto de encontro de exilados. Aqueles filhos da diáspora iraquiana têm consciência de que nunca mais se sentirão confortáveis em seu país. A nova realidade de uma mulher, de um gay e de um fundamentalista islâmico no Ocidente é o motivo do ataque.

A trama está diretamente relacionada à vida do diretor, que adotou o nome artístico de Samir. Por questões políticas, sua família fugiu do Iraque para a Suíça em 1961, quando ele era criança.

“Minha infância foi no Iraque e tive a sorte de estar na época dourada de lá. Depois da revolução de 1958, acreditávamos que tudo mudaria, que os iraquianos construiriam uma nação em pé de igualdade com as antigas nações coloniais”, afirma o cineasta, de 66 anos, em entrevista por vídeo ao Estado de Minas. “Esse foi o espírito sob o qual cresci, de modernidade, laicidade, igualdade de gênero e, claro, diversidade”, diz Samir, também corroteirista do longa.

O diretor se refere ao movimento que derrubou a monarquia hachemita, em 14 de julho de 1958, e proclamou a República. Militantes do Partido Comunista Iraquiano, os pais do cineasta faziam oposição ao regime apoiado pelo colonialismo britânico. “Cresci com duas religiões: o islamismo e o comunismo”, revela o diretor.

Depois da revolução de 1958, comunistas foram perseguidos por forças apoiadas pelos Estados Unidos e sua Agência Central de Inteligência (CIA). “Eu era criança e me disseram: 'Vamos passar férias na Suíça’. Ninguém me disse que seríamos refugiados. Não ficamos um mês, quatro meses ou quatro anos. Passaram-se 40 anos da minha vida”, conta Samir, referindo-se ao exílio.

Em 1968, o Baath, partido de Saddam Hussein, passou a governar o Iraque, depois de chegar ao poder por meio de um golpe de Estado. Sob o comando de Hussein, que assumiu o poder em 1979, o país se envolveu em conflitos armados com o Irã e o Kuwait, tornando-se alvo da Guerra ao Terror patrocinada pelos Estados Unidos após o atentado às Torres Gêmeas, em setembro de 2001. Em 2003, forças de coalizão ligadas aos EUA invadiram o Iraque e derrubaram Hussein, executado em 2006.

Amal (Zahraa Ghandour) tenta retomar a vida, depois de fugir do ex-marido, espião de Saddam Husseim
Amal (Zahraa Ghandour) tenta retomar a vida, depois de fugir do ex-marido, espião de Saddam Husseim

LIGAÇÃO 

Mesmo distante de seu país, o cineasta Samir manteve vínculos com Bagdá. Por isso decidiu filmar a saga de refugiados como ele. Atualmente, há cerca de 4,7 milhões de iraquianos exilados, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur).

“Estão sempre me perguntando: Por que você está fazendo de novo um filme sobre o Iraque? Minha resposta é muito simples: Posso cortar meu braço fora? Claro que não. Sabe, na minha infância, eu estava lá. A infância sempre dita suas memórias em qualquer lugar, independentemente do que você tenha feito”, explica.

Assombrados pela ditadura de Saddam Hussein, os personagens de “Bagdá vive sem mim” tentam conciliar o modo de vida ocidental com a cultura de seu país. E o choque dessas duas realidades gera conflito.

Na visão de Samir, religião, machismo e a homofobia estão interligados. “Neste momento histórico, acredito que a religião realmente apoia a tendência reacionária de oprimir as mulheres. Eles querem controlar a sexualidade delas. Sendo assim, também querem controlar a sexualidade do homem. Todos devem fazer apenas o que a religião manda. Então, é óbvio que a questão do homem queer e gay está ligada à libertação da mulher”, afirma o cineasta.

Diante do fortalecimento do extremismo vinculado ao fundamentalismo islâmico nos últimos 20 anos, Samir decidiu mostrar que, na verdade, a agenda religiosa dos radicais se conecta à ditadura e ao poder. “No mundo ocidental, como no meu filme, eles fingem que estão contra as atitudes colonialistas do Ocidente. Mas é uma piada, porque instalam a mesma opressão de antes do colonialismo. Isso não tem nada a ver com a religião, é política”, aponta o diretor.

A arquiteta Amal (Zahraa Ghandour), uma das funcionárias do café, representa a libertação feminina no contexto árabe. Ela pediu exílio à Inglaterra por ser cristã, mas, na verdade, fugia do ex-marido Ahmed (Ali Daim Mailiki), espião de Saddam Hussein.

Por meio de personagens como Amal, Samir revela que parte da juventude do país não se alinha a valores extremistas. “Soube desse lado porque viajei para Bagdá, nos últimos anos, e vi uma geração mais jovem. Eles estão saindo às ruas, fazendo grafite, música, rap. É incrível o que está ocorrendo, mas ninguém sabe disso no Ocidente.” Os ideais desses jovens são confrontados pelo fundamentalismo religioso, afirma.

“Todos com mais de 40 anos ainda se sentem perseguidos pelo passado. Aliás, esse é um dos motivos pelos quais apenas jovens estão saindo às ruas no Iraque. Os pais se sentem culpados, pois não foram capazes de fazer nada contra a ditadura. Então, apoiam a garotada, mas, por outro lado, não colocam mais as mãos na política. Isso é uma pena, porque, de certa forma, são como Tariq. Eles sentem culpa sem falar”, afirma o cineasta.

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GLAUBER 

Samir diz que ficou contente com a notícia de que “Bagdá vive em mim” será exibido no Brasil. “Me inspirei muito no cinema brasileiro dos anos 1970, vi muitos filmes políticos e experimentais do Brasil naquele tempo”, revela, citando o diretor Glauber Rocha (1939-1981). De acordo com ele, Brasil e Iraque têm muitas semelhanças, que vão além da influência da religião ou do passado marcado pela ditadura.

“No meu filme, falo sobre uma sociedade de imigrantes, da diáspora. E o Brasil, claro, é exemplo de uma sociedade de imigrantes, em primeiro lugar. Portanto, é um povo que se mistura sob a ideia de que a elite portuguesa sempre ditou sobre como deve ser sua cultura. Quando soube que meu filme seria exibido no Brasil, fiquei muito feliz, pois achei o terreno perfeito”, conclui Samir.


*Estagiário sob supervisão da editora-assistente Ângela Faria

“BAGDÁ VIVE EM MIM”

(Suíça, Alemanha, Reino Unido, 2019. 109min. Direção de Samir. Com Waseem Abbas, Haytham Abdulrazaq, Zahraa Ghandour e Ali Daim Mailiki) Exilados iraquianos, frequentadores de um café londrino, têm a vida transformada quando são atacados pelo sobrinho do dono do estabelecimento, sob a influência de islamitas radicais. Estreia nesta quinta-feira (2/09), no Cine Una Belas Artes, com sessões às 16h, 18h e 20h.


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