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Estado de Minas MEMÓRIA

Família disponibiliza na internet todo o acervo de Vinicius de Moraes

Onze mil documentos do escritor, compositor e diplomata, entre cartas, anotações e rascunhos, revelam o perfeccionismo do mestre da poesia e da canção


25/05/2021 04:00 - atualizado 25/05/2021 07:53
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Ao longo da vida, Vinicius de Moraes guardou meticulosamente os escritos que compõem sua vasta e multifacetada obra
Ao longo da vida, Vinicius de Moraes guardou meticulosamente os escritos que compõem sua vasta e multifacetada obra (foto: Paulo Namorado/O Cruzeiro/Arquivo Estado de Minas %u2013 16/11/1959)

O cuidado da família de Vinicius de Moraes com sua obra era constante. “O primeiro poema escrito por ele, aos 8 anos, é um dos documentos que estarão no Acervo Digital, assim como seus últimos escritos”, comenta Julia Moraes, neta e idealizadora do projeto. “O zelo era dele também, pois é possível acompanhar a evolução criativa, por exemplo, do poema 'O avesso': há várias versões escritas ao longo de 10 anos, é um mapa da criação. E não são só acertos, ali estão os erros também. Acredito que isso valorize todos os artistas.”

Vinicius, de fato, era perfeccionista e não sossegava enquanto não atingisse o resultado considerado ideal. Especialmente quando compunha letras de canções. “É possível notar como ele era rígido em buscar a métrica correta, a sílaba tônica ideal para a melodia”, observa Marcus Moraes, sobrinho-neto do poeta e responsável pela coordenação técnica e design do Acervo Digital, que nasceu a partir do desejo de preservar digitalmente o arquivo, incentivar a pesquisa e democratizar o acesso à obra de Vinicius.
Manuscrito de ''Chega de saudade'', clássico da bossa-nova
Manuscrito de ''Chega de saudade'', clássico da bossa-nova (foto: Acervo Digital/reprodução)

VIAGEM

Pesquisar o vasto material criado pelo artista representa uma viagem no tempo e também geográfica. Afinal, homem afetuoso e aberto a novas amizades, Vinicius passou por Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Ouro Preto, Montevidéu, Buenos Aires, Paris, Oxford e Los Angeles, entre outras cidades, seja na função de diplomata, seja em excursões como músico.

Nesse trajeto, manteve contato com as mais diversas figuras, de Mãe Menininha do Gantois a Orson Welles, de Baden Powell a Pablo Neruda, sem se esquecer dos grandes parceiros, como Tom Jobim e Toquinho.

Quando o Acervo Digital estiver disponível, a partir desta quinta-feira (27/5), fãs e pesquisadores poderão conhecer a magnífica escrita de Vinicius em ordem cronológica. Isso permite notar com mais clareza sua evolução e, principalmente, como o poeta passou de uma evidente preocupação religiosa no início da carreira para temas mais mundanos, como o cotidiano das pessoas e, principalmente, as relações amorosas.

“Será possível também fixar sua trajetória em um determinado momento, como, por exemplo, descobrir tudo o que Vinicius escreveu no ano de 1968”, explica Marcus.

O acervo está dividido em três grandes séries. A primeira, “Correspondência”, compreende cartas, cartões e telegramas recebidos tanto de amigos como de figuras relacionadas ao seu trabalho como diplomata.

É curiosa a troca de informações que Vinicius mantinha com seus colegas escritores, caso de uma carta enviada a Manuel Bandeira em que o poeta solicita leitura crítica de seus poemas. Em outra, pede a opinião sobre versos de “Pátria minha”, com receio de ter problemas políticos.

JOBIM Será possível também se divertir com a troca de confidências com grandes amigos, como na carta em que Tom Jobim comenta com Vinicius a exigência de um produtor francês para que a dupla compusesse mais rapidamente canções que formariam a trilha sonora do filme “Orfeu negro” (1959), dirigido por Marcel Camus e que ganhou o Oscar de melhor longa estrangeiro.

“Na carta, descobre-se que o tal produtor anunciava que contrataria um músico mais veloz na criação e que seria Dorival Caymmi. O texto termina com um há há há”, diverte-se Julia, lembrando que o grande cantor e compositor baiano era conhecido pela falta de pressa para criar seus clássicos.

A segunda série, “Produção intelectual”, traz documentação abrangente, que revela o extenso campo de atividades às quais Vinicius se dedicou ao longo da vida: poesia, textos em prosa, artigos, peças, letras de música, shows, roteiros de cinema, discursos, entrevistas e traduções.

Assim, será possível observar as diferentes versões do roteiro de “Les amants de la mer” e detalhes da produção até o roteiro final de “Garota de Ipanema”.

''O conjunto dos documentos tem o tamanho da vida de Vinicius, que produziu poesia, além de material para cinema e teatro, e que, na vida pessoal, teve uma infinidade de amigos, com quem manteve uma vasta troca de correspondência''

Julia Moraes, idealizadora do Acervo Digital


CINEMA

“Há também o roteiro decupado de 'Orfeu negro', com todas as anotações técnicas, uma aula de cinema”, nota Marcus, lembrando ainda a presença da curiosa entrevista em que Vinicius contou que adaptou a peça “Orfeu da Conceição” para o cinema em apenas 15 dias.

Já a área reservada à criação musical traz mais de 260 letras e, assim como os poemas, muitas apresentam mais de uma versão – “Insensatez”, “Chega de saudade” e “Canto de Ossanha”, por exemplo, têm quatro, enquanto “Canção do amanhecer” ganhou nove versões.

“Como a reprodução dos documentos será fiel ao original, vai ser possível notar detalhes curiosos, como a anotação de uma conta de somar no canto do papel onde ele rascunhou a letra de 'Insensatez'”, diz Julia.

Outro destaque é a documentação completa de Brasília, caso de “Sinfonia da Alvorada”, poema sinfônico de Vinicius e Tom Jobim feito a pedido de Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer para a inauguração da capital federal. “Em uma carta, Tom desabafa que a obra não foi bem compreendida”, comenta a pesquisadora.

Curioso também é um original, datado de 1927, de “Os três amores”, imitação de “A ceia dos cardeais”, de Júlio Dantas. Em um canto, nota-se uma observação: “Foi feito com a idade de 14 anos. Peço, pois, ao leitor ser bondoso comigo”.

BALANÇO

Julia gosta particularmente do documento ao qual Vinicius deu o título de “O dever e o haver”. Semelhante ao balanço fiscal que as empresas fazem em sua contabilidade, o trabalho representa uma prestação de contas do poeta, mas com a sua arte.

A terceira série, “Documentos diversos”, reúne folhetos, cadernos de anotações, cartões de visita, convites e documentos importantes para o estabelecimento da história do cinema no Brasil. Ali está um dossiê sobre a criação do Instituto Nacional do Cinema.

Além das séries, o projeto Acervo Digital vai contar com o podcast Caderno de Leituras de Vinicius de Moraes, inspirado no livro publicado pela Companhia das Letras, e também um minidocumentário dirigido por Julia, que mostra como são guardados e organizados documentos raros, além do processo de digitalização do acervo.

Como se trata de vasto material, Julia e Marcus pretendem abrir futuramente novas frentes, como exibir todas as matérias publicadas por Vinicius na imprensa.

“Ao final, quem consultar toda essa obra vai descobrir o esforço físico e artístico de Vinicius, um homem que se dedicou ao trabalho”, comenta Marcus Moraes. (Agência Estado)




História de uma vida

Na carta em papel timbrado, datada de dezembro de 1949, o ator e diretor Charles Chaplin agradece o recebimento do primeiro número da revista “Filme” e promete escrever uma mensagem, que será enviada com uma foto autografada.

Em outro papel, também timbrado, mas sem data, um divertido Orson Welles reforça sua descrença nos jornais então editados pelo empresário William Randolph Hearst: “Eles noticiaram que eu caí de um andaime a três metros de altura e quebrei uma perna, mas, acredite-me, foi só um desejo”, escreve o cineasta, reforçando o convite para um novo almoço.

As duas correspondências foram endereçadas a Vinicius de Moraes (1913-1980), então cônsul brasileiro na Califórnia, nos Estados Unidos. Dois exemplos do vasto material cuidadosamente arquivado e catalogado.

CRIAÇÃO

A partir de quinta-feira (27/5), mais de 11 mil documentos poderão ser consultados na íntegra na internet. São manuscritos e datiloscritos (material produzido em máquina de escrever), que revelam particularidades do processo de criação do poeta ao longo de quase 50 anos. Não haverá material em áudio e vídeo.

“O acervo é algo vivo, pois conta a história de uma vida e de como Vinicius percebia o mundo”, comenta Julia Moraes. “O conjunto dos documentos tem o tamanho da vida de Vinicius, que produziu poesia, além de material para cinema e teatro, e que, na vida pessoal, teve uma infinidade de amigos, com quem manteve uma vasta troca de correspondência”, continua.

O acervo pessoal está guardado no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira (AMLB) da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, e disponível para consulta presencial desde 1992. Curiosamente, o AMLB foi criado a partir de um pedido de Carlos Drummond como local para a memória literária nacional.

“A família, especialmente as irmãs Lygia e Laetitia e o próprio Vinicius, sempre foi cuidadosa com os documentos, que estavam na casa do poeta, no Bairro da Gávea”, conta Marcus Moraes. “Minha mãe, que era bibliotecária, manuseava, maravilhada, os originais e ajudou na catalogação. Foi possível notar como Vinicius era um grande trabalhador da palavra – ele fazia e refazia os seus poemas.”

Segundo Julia, o avô tinha sua rotina: trabalhava pela manhã e, à tarde, recebia os amigos para longas conversas regadas a uísque. 
 
ACERVO DIGITAL/VINICIUS DE MORAES
Onze mil documentos poderão ser consultados a partir de quinta-feira (27/5), no site www.acervo.viniciusdemoraes.com.br. Não há áudios e vídeos.


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