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Estado de Minas SAÚDE PÚBLICA

Falta um olhar para as 'doenças negligenciadas' no Brasil

Especialistas criticam a ausência de investimentos governamentais e da indústria farmacêutica para combater patologias que ocorrem mais em países pobres


12/12/2021 04:00 - atualizado 12/12/2021 08:11

mosquito Aedes Aegypti transmissor da dengue
Após erradicar duas vezes o Aedes, o que se observou nas últimas três décadas foi o avanço paulatino da colonização do mosquito em todo o Brasil (foto: Agência Pará/divulgação)


Em pleno século 21, com toda inovação presente no mundo, com avanços da ciência subsidiados pela tecnologia proporcionando descobertas científicas cada vez mais velozes, transformação que a reflexão moral nem acompanha, é inaceitável que as chamadas doenças negligenciadas ainda matem milhões de pessoas e não têm a atenção devida.

O médico infectologista Dario Brock Ramalho, presidente da Fundação Ezequiel Dias (Funed), explica que algumas patologias ocorrem mais em países pobres, como decorrência principalmente de condições socioeconômicas que geram maior vulnerabilidade.

“Ocorre que, consequentemente, não há mercado para a produção de soluções para essas patologias pela 'big pharma'. Essas indústrias privadas internacionais são muito eficientes em produzir alternativas terapêuticas, vacinas e exames. Basta ver o que foi feito para a COVID-19: vastas quantidades e em tempo recorde. Agora, isso posto, elas visam ao lucro e não há lucro a ser feito com doenças que acometem majoritariamente pessoas de baixo poder aquisitivo em países pobres, daí serem 'doenças negligenciadas'.”
Não apenas isso, os grandes centros de pesquisa estão nos países desenvolvidos e, naturalmente, pesquisam majoritariamente soluções para as populações residentes naqueles países, ressalta Dario Brock. Fica claro que o investimento em pesquisa, particularmente os guiados para essas patologias, é especialmente importante em nosso meio: para algumas doenças, se nós não pesquisarmos as soluções, ninguém mais irá.

“Acredito que esse é um espaço onde órgãos públicos, como universidades, e a própria Funed, têm sua missão mais clara, não restritos à visão do lucro. Temos a possibilidade de investir em algo que é importante para a sociedade, independentemente do valor comercial que aquele produto poderia ter.”

Dario Brock Ramalho alerta que, primeiro, é importante considerar o quanto se caminhou desde o início do século passado. “A malária foi reduzida à Região Norte do país, a doença de Chagas hoje é transmitida em quantidade muito menor e majoritariamente por ingestão acidental do barbeiro (e não pela picada) e mesmo a dengue foi erradicada duas vezes, muito embora tenha voltado. Em parte, o arrefecimento do combate a essas patologias é paradoxalmente fruto do sucesso das políticas sanitaristas da primeira metade do século 20.”

Nas últimas décadas, segundo ele, predominou a percepção de que as doenças infecciosas tinham sido resolvidas, o retorno da dengue, acompanhada de zika e chikungunya, assim como das pandemias explosivas do HIV e do Sars-CoV-2 vieram para mostrar que essa guerra não acabou e que é necessário investir em ferramentas de combate. “É verdade também e importante não esquecer os determinantes sociais de cada uma dessas patologias. Atacar a desigualdade e prover saneamento e acesso à saúde é ainda hoje a medida mais importante e que continua como o maior desafio para a nossa sociedade.”
 
Dario Brock Ramalho
(foto: André Barros/Divulgação)
 

"Vacinas para dengue, zika e chikungunya, assim como a Wolbachia, parecem ser bons exemplos de tecnologias novas em que o investimento é necessário para que se possa mudar esse paradigma”


Dario Brock Ramalho, médico infectologista e presidente da Fundação Ezequiel Dias (Funed)


DESAFIOS

 Mas, por outro lado, o médico infectologista destaca que é importante também reconhecer que alguns desses desafios não se resumem a questões de cunho social.

“A dengue e demais doenças transmitidas pelo Aedes são, na minha opinião, o melhor exemplo disso: após erradicar duas vezes o Aedes, o que se observou nas últimas três décadas foi o avanço paulatino da colonização desse mosquito em todo o Brasil. Municípios e estados com os mais diversos IDHs, cultura e gestão da saúde foram todos eles impactados. Parece-me óbvio então que o que está acontecendo é que as ferramentas de que dispomos não são suficientes nem para erradicar nem para controlar o Aedes e que, portanto, precisamos de tecnologias novas que possam fazer isso. Vacinas para dengue, zika e chikungunya, assim como a Wolbachia, parecem ser bons exemplos de tecnologias novas em que o investimento é necessário para que se possa mudar esse paradigma. Inseticida já deu o que tinha que dar.”

E MINAS? 

Qual o cenário presente em Minas diante das doenças negligenciadas? Dario Brock Ramalho diz que as duas epidemias de febre amarela parecem ser bons exemplos, em especial por terem sido um fenômeno regio- nal.

“Diferentemente da COVID-19, foi inicialmente um problema particularmente mineiro. Para a febre amarela não havia como importar soluções prontas como estamos fazendo com a COVID-19. Tivemos que criar aqui as soluções. Os conhecimentos de como tratar a doença foram construídos no Hospital Eduardo de Menezes, em Belo Horizonte, e foi isso que serviu de base para a forma como tratamos hoje os pacientes que adoecem por não estar vacinados.”

Outro exemplo, segundo ele, é a parceria que a Funed vem desenvolvendo com a UFMG para o desenvolvimento de uma vacina para a COVID-19. “Somando à pesquisa nas universidades, à capacidade de desenvolvimento disso em escala pela Funed, temos a perspectiva de impactar nas doenças negligenciadas em nosso meio.”

Entre as doenças negligenciadas, nos últimos cinco anos, dos poucos casos da hanseníase registrada em 24 países da América, 94% delas foram no Brasil. Para o médico infectologista, como as demais doenças negligenciadas, atacar as condições socioeconômicas que propiciam essas patologias é sempre crucial. “A hanseníase tem como uma de suas maiores dificuldades o diagnóstico. Pensando que conseguimos montar gigantescas redes de diagnóstico por PCR, do dia para a noite, para a COVID-19, precisamos fazer o mesmo para a hanse- níase. Uma rede efetiva que permita o diagnóstico por meio de PCR permitiria tratar mais pacientes.”


Gláucia Fernandes Cota
(foto: Jair Amaral/em/d.a press)

três perguntas para...
 
Gláucia Fernandes Cota – médica pesquisadora da Fiocruz Minas e líder do Grupo de Pesquisa Clínica e Políticas Públicas em Doenças InfectoParasitárias

Doença de Chagas, dengue, malária, esquistossomose, leishmaniose visceral, tuberculose. Doença ditas de “pobre” ou de “países pobres e desiguais” 
sempre ficarão em segundo plano de combate?
Concentrar esforços e recursos para avançar no combate a essas doenças é um grande desafio mundial, que ficou ainda mais complicado não só pela desarticulação provocada pela pandemia, mas também pelo direcionamento maciço de recursos em pesquisa para COVID-19, em detrimento de outros agravos. O agravamento da crise econômica mundial durante a pandemia também leva a um aumento da situação de pobreza das populações atingidas, intensificando o risco de adoecimento e a redução de recursos destinados à ciência, tecnologia e saúde.

Inovação, ciência, desenvolvimento, vacina para COVID-19 em tempo recorde, tantos avanços... Por que as doenças citadas acima ainda matam pessoas e são pouco combatidas?
A principal razão para essa diferença marcante no interesse da indústria e dos governos em COVID-19 em relação às doenças negligenciadas está na disposição política para o enfrentamento e no aspecto econômico envolvido. Enquanto na pandemia de COVID-19, pela disjunção social gerada e, consequentemente, grande apelo popular instalado, existe uma grande disposição em destinar grande soma de recursos e um mercado consumidor ávido e disposto a pagar pelas soluções em saúde, as doenças negligenciadas, justamente por afetar populações com baixo poder aquisitivo e reivindicatório, continuam sem atrair a atenção de investimento privado, tampouco dos gestores públicos, pela sua cronicidade, relação intrínseca com a estrutura socioeconômica desigual arraigada.


Como controlar essas doenças mundialmente, visto que alguns 
países conseguiram erradicá-las?
Com políticas públicas bem planejadas e continuadas, que envolvam fomento à pesquisa e organização do sistema de saúde, mas principalmente políticas econômico-sociais que impactem a vulnerabilidade social dos países pobres.


Subnotificação de doenças tropicais



Igor Nonato*

Desde fevereiro de 2020, o Brasil enfrenta a pandemia da COVID-19 e, desde a confirmação dos primeiros casos, observou-se uma diminuição dos registros de casos prováveis e óbitos de dengue.

Segundo o Ministério da Saúde, essa diminuição pode ser consequência do receio da população em procurar atendimento em uma unidade de saúde, assim como uma possível subnotificação ou atraso nas notificações das doenças tropicais negligenciadas (DTN), associadas à mobilização das equipes de vigilância e assistência para o enfrentamento da pandemia.

O país já apresenta as consequências preocupantes deste cenário: o diagnóstico nacional de novos casos de hanseníase, por exemplo, foi reduzido à metade entre 2019 e 2020, segundo dados do Boletim do Ministério da Saúde. Casos não notificados nesse período correm risco de desenvolver um quadro de sequelas físicas irreversíveis das doenças.

Causadas por agentes infecciosos ou parasitas que predominam nas regiões tropicais em desenvolvimento, as DTNs são um conjunto de doenças e acomete pessoas em situação de vulnerabilidade. No Brasil, além de chagas e dengue – mais comuns –, a chikungunya, hanseníase e leishmaniose se destacam no grupo. Para Eliana Pires, médica intensivista do Hospital Felício Rocho, o destaque à leishmaniose se deve ao seu crescimento no território nacional. 

Desde o primeiro relato de leishmaniose visceral (LV) no Brasil constatou-se uma transformação drástica na distribuição geográfica da doença. Antes restrita às áreas rurais do nordeste brasileiro, a LV avançou para outras regiões, alcançando inclusive a periferia de grandes centros urbanos.

Essa expansão e o aumento significativo no número de casos fizeram com que a leishmaniose passasse a ser considerada pela Organização Mundial da Saúde uma das prioridades dentre as doenças tropicais negligenciadas. 

A leishmaniose visceral é uma zoonose de evolução crônica, com acometimento sistêmico e, se não tratada, pode levar a óbito até 90% dos casos. É transmitida ao homem pela picada de fêmeas do inseto vetor infectado, conhecido popularmente como mosquito palha, asa-dura, tatuquiras, birigui, dentre outros. No Brasil, a principal espécie responsável pela transmissão é a Lutzomyia longipalpis, vetor endêmico em Mato Grosso do Sul.

Em 2019, de acordo com boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, foram confirmados 2.529 casos novos no Brasil, com taxa de incidência de 1,2 casos a cada 100 mil habitantes. A autoctonia da doença foi confirmada em 24 Unidades Federativas, distribuídas nas cinco regiões brasileiras, sendo a região Nordeste responsável pelo maior registro de casos do país (49,1%).

Eliana conta que, com o desenvolvimento recorde da vacina para a COVID-19, há hoje uma esperança maior do surgimento de tratamentos específicos para as DTNs, já que na pandemia os cientistas adquiriram muito conhecimento no que se refere a infecções. A expectativa existe, mesmo que nos últimos dois anos a gestão das doenças tropicais pelo governo tenha sido ainda menos favorável à evolução de erradicação e tratamento dessas doenças. “A vacina está disponível apenas para a febre amarela”, lembra a médica. E diz: “Durante a pandemia da COVID-19, as atenções se viraram para uma doença só, causando uma desarticulação do sistema de saúde e atrapalhando o combate às DNTs”.
 
 
Reflexos do atraso nos registros


Diagnóstico nacional de novos casos aponta para subnotificação

» 440.012 casos prováveis de dengue no Brasil ocorreram até o primeiro semestre de 2021. Em comparação com o ano de 2020, houve redução de 51,8% de casos registrados para o mesmo período analisado

» 63.713 casos prováveis de chikungunya foram registrados no país, que correspondem a uma diminuição de 3,6% dos casos em relação ao ano anterior

» 3.458 casos prováveis de zika até a SE 27, correspondendo a uma taxa de incidência de 1,6 caso por 100 mil habitantes no país. Em relação a 2020, os dados representam redução de 35,6% no número de casos do país

Fonte: Boletim epidemiológico do Ministério da Saúde 


*Estagiário sob supervisão da editora Teresa Caram

 
 


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