(none) || (none)
Publicidade

Estado de Minas COMPORTAMENTO

Síndrome da gaiola: dores e delícias da complexidade humana

A síndrome da gaiola é a constatação de um fenômeno comportamental relacionado à necessidade de se manter seguro, dentro de casa, diante da pandemia


27/06/2021 04:00 - atualizado 24/06/2021 12:17

O medo gera certa distorção da avaliação da realidade. Por exemplo, uma pessoa já vacinada, sem comorbidades, entrar em pânico se precisar sair(foto: DAVID TAPIA SAN MARTIN/Unsplash)
O medo gera certa distorção da avaliação da realidade. Por exemplo, uma pessoa já vacinada, sem comorbidades, entrar em pânico se precisar sair (foto: DAVID TAPIA SAN MARTIN/Unsplash)


É importante frisar que o que estamos chamando de síndrome da gaiola, ou “cave syndrome” nos países de língua inglesa, não é um diagnóstico médico, mas sim a constatação de um fenômeno comportamental relacionado à necessidade que todos tivemos de nos manter seguros em virtude da pandemia.

Dentro desse contexto, portanto, é um fenômeno que faz sentido estar presente neste momento da história”, destaca o psiquiatra Alexandre de Araújo Pereira, doutor em medicina pela UFMG, consultant psychiatrist, Ph.D., professor do curso de medicina e do mestrado em ensino em saúde da Unifenas-BH.

Alexandre de Araújo Pereira afirma que, sem dúvida, a síndrome da gaiola é imposta diante do medo do contágio, da doença, da morte ou de suas sequelas, caso alguém adoeça gravemente. Esse por si só é um componente poderoso que, em algumas pessoas, pode gerar atitudes extremas, como condutas fóbicas.

“Nesses casos, o medo gera certa distorção da avaliação da realidade. Por exemplo, uma pessoa já vacinada, sem comorbidades, entrar em pânico se precisar sair para resolver necessidades pessoais, mesmo que os riscos de aglomeração ou de contágio sejam mínimos.”

Mas algumas pessoas podem ter se beneficiado dessa necessidade temporária de mudança, explica o psiquiatra. Pessoas tímidas, ansiosas e inseguras no contato social face a face, por exemplo. Ou pessoas com traços paranoicos de personalidade, que estão sempre achando que as pessoas querem prejudicá-las. Essas podem ter resistência em querer sair.

“Há também situações mais objetivas, como ser mais barato estudar em casa, sem ter que arcar com os custos de morar fora, por exemplo. São situações em que a experiência do isolamento físico pode ter trazido benefícios, e é muito difícil mudar de hábitos quando eles nos favorecem nitidamente.”

O psiquiatra alerta que, como ainda não há levantamentos epidemiológicos que tipifiquem com precisão o número de pessoas afetadas por esse temor de sair de casa, mesmo com condições sanitárias mais favoráveis, é possível pensar, sim, que esse pode ser um fenômeno dos efeitos da pandemia e da sua repercussão negativa sobre a saúde mental de um grupo significativo de pessoas. Nesses casos, as pessoas podem tomar medidas que podem facilitar a sua saída de casa, apesar do medo intenso.

A vida na frente das telas é uma alternativa que gera algum alívio, mas é incompleta, soa artificial e temporária. À medida que a situação sanitária se torna mais favorável, precisamos reagir. Esperamos que a taxa de cobertura vacinal avance rapidamente para melhorar a qualidade dos encontros, que são necessários

Alexandre de Araújo Pereira, psiquiatra, doutor em medicina pela UFMG e consultant psychiatrist, Ph.D



Ele exemplifica que as pessoas podem começar saindo para pequenas caminhadas perto de casa, inicialmente acompanhadas, depois sozinhas. Com o ganho de confiança e da percepção concreta de que essa ação não provoca riscos de adoecimento, podem progredir para outras ações, como retirar a máscara em ambientes abertos e sem pessoas próximas, encontrar poucas pessoas em ambientes abertos, ou ir a compromissos que não podem ser adiados, como uma visita ao médico.

“Essas ações de crescente exposição poderão ajudar no retorno da autonomia pessoal. Nas situações mais complexas, que geram isolamento grave e impossibilidade de a pessoa iniciar ações sozinhas, talvez seja preciso ajuda psicológica ou mesmo psiquiátrica se os sintomas de ansiedade forem disfuncionais e interferirem no sono e na alimentação, por exemplo.”

REAÇÃO DAS CRIANÇAS 


Conforme o psiquiatra, os sinais da síndrome da gaiola nas crianças são menos específicos, principalmente se são menores e ainda têm dificuldade para se expressar de forma elaborada verbalmente. “Nesses casos, elas tendem ao isolamento, não querem brincar, ficam mais irritadas, podem ter pesadelos, acordar noturno ou problemas alimentares. Podem também apresentar o que chamamos de ansiedade de separação, quando as crianças não suportam ficar longe das pessoas mais próximas afetivamente a elas, que representam um papel de proteção.”

Psiquiatra Alexandre de Araújo Pereira afirma que a síndrome da gaiola não é um diagnóstico médico, mas a constatação de um fenômeno comportamental (foto: Arquivo Pessoal)
Psiquiatra Alexandre de Araújo Pereira afirma que a síndrome da gaiola não é um diagnóstico médico, mas a constatação de um fenômeno comportamental (foto: Arquivo Pessoal)
Segundo ele, elas podem fazer birra na saída para a escola, dizer que estão doentes, sentindo algum mal-estar ou chorar de forma compulsiva na chegada à escola. Isso pode exigir que os pais fiquem um pouco com a criança na escola, até que elas se sintam mais seguras em voltar ao ambiente escolar.

“Mas é importante lembrar que as crianças devem estar sentindo falta da convivência com os colegas e que o ambiente da escola as ajuda na aquisição de habilidades sociais de convivência, além de ser muito prazeroso para a maioria.”

O tempo da síndrome da gaiola, de acordo com Alexandre Pereira, depende de cada um. Das experiências passadas, dos traços de personalidade, ou seja, das capacidades de lidar com as adversidades da vida.

“Em relação ao impacto futuro da pandemia na saúde mental das pessoas, ainda não temos um distanciamento adequado no tempo para avaliação precisa. Mas observamos no consultório que insônia, reações ansiosas e depressivas e aumento no consumo de substâncias como álcool, cigarro e outras drogas têm sido tentativas de saída do mal-estar bastante presentes.”

Alexandre Pereira enfatiza que as pessoas têm de perceber que elas precisam reagir. Não podem ficar apenas com medo e se retrair dentro de casa. “É necessário colocar as capacidades criativas e inventar formas de convivência que não nos tornem solitários, pouco gregários, avessos à convivência social. Essa é uma necessidade humana e precisamos buscar essa possibilidade. A tecnologia ajuda, mas não se deve contar apenas com ela, é insuficiente. A vida na frente das telas é uma alternativa que gera algum alívio, viabiliza boa parte do trabalho, mas é incompleta, soa artificial e temporária. À medida que a situação sanitária se torna mais favorável, precisamos reagir. Esperamos que a taxa de cobertura vacinal avance rapidamente para melhorar a qualidade dos encontros, que são necessários.”

O psiquiatra lembra que o ser humano é complexo. Por vezes, toma decisões que o comprometem. “Pagamos um preço pela convivência social, e o preço é a liberdade individual. Medidas restritivas, quando necessárias, precisam ser cumpridas, mas nunca serão unânimes. Haverá sempre algum tipo de conflito interno, da luta entre o desejo e o dever, entre a minha priorização e a prioridade do outro. Essa ainda é a nossa estrutura psíquica e social. Mas a comoção coletiva também tem a sua contribuição, não é à toa que o mundo considerado civilizado procurou trocar informações de forma mais eficiente sobre a pandemia e as vacinas foram produzidas em tempo recorde. Não me parece que a maioria queira trocar essa possibilidade solidária pela barbárie.”

TER CONTROLE SOBRE A PRÓPRIA ANSIEDADE 


Sentir medo e ansiedade é normal. Faz parte da vida. O que não pode é se deixar controlar por tais sentimentos. É importante estar atento para não cair na armadilha da síndrome da gaiola. Luciana Felipetto, psicopedagoga e fonoaudióloga, que trabalha na Clínica Aprendizagem e Cia, destaca que muita gente tem como característica se manter mais em casa, mais isolado. Isso é normal, mas quando ultrapassa os limites, a ponto de não conseguir socializar, há o risco de desenvolver transtornos de ansiedade.
  
Segundo a psicopedagoga, isso vai ocorrer todas vezes em que a pessoa precisar deixar o ambiente onde se sente confortável. Nesse caso, é sim um problema sério, que precisa de intervenção psicológica e psiquiátrica. Mas, até então, se sentir só, por uma questão de personalidade, é natural, desde que não desencadeie sintomas como sudorese, taquicardia, medo e fobias.

 Luciana Felipetto, psicopedagoga, diz que perder o convívio com as pessoas e deixar de viver a vida poderá desenvolver um grau de depressão(foto: Arquivo Pessoal)
Luciana Felipetto, psicopedagoga, diz que perder o convívio com as pessoas e deixar de viver a vida poderá desenvolver um grau de depressão (foto: Arquivo Pessoal)
Luciana Felipetto explica que tudo que o ser humano vê como ameaça desencadeia o medo e, consequentemente, transtornos de ansiedade. “Então, uma pessoa que está numa situação assim precisa urgentemente se tratar e procurar ajuda psicológica. Afinal, essa situação acaba travando-a, deixando-a apenas ali naquele ambiente onde se sente confortável, o que a fará perder o convívio com as pessoas, deixar de viver a vida e poderá desenvolver um grau de depressão.”

Para a psicopedagoga, diante da pandemia temos de saber que, com as medidas de distanciamento, uso do álcool em gel, das máscaras, o avanço da vacinação, dos protocolos sanitários, tudo isso tem que dar uma segurança para voltarmos aos poucos a viver. Então, as pessoas vão ter que começar a se desvencilhar desse medo, porque, se ficar ali concretizado, aí vai precisar de um apoio psicológico.

“E o que a gente vê em muitos pacientes, principalmente na clínica, é que estão ainda muito inseguros. Ainda se sentem ansiosos, têm taquicardia, ficam tensos, ligam para desmarcar as consultas e muitos deles já se posicionaram querendo permanecer no sistema on-line, porque ainda se sentem ameaçados. O que não pode acontecer, contudo, é a pessoa se privar completamente do convívio social.”
 

O que a gente vê em muitos pacientes, principalmente na clínica, é que estão ainda muito inseguros. Ainda se sentem ansiosos, têm taquicardia, ficam tensos, ligam para desmarcar as consultas e muitos deles já se posicionaram querendo permanecer no sistema on-line, porque ainda se sentem ameaçados. O que não pode acontecer, contudo, é a pessoa se privar completamente do convívio social

Luciana Felipetto, psicopedagoga

 

Luciana Felipetto enfatiza que o mundo não será mais o mesmo depois pandemia, não é? Foi um marco na educação, na saúde pública, em vários contextos sociais. As próprias empresas viram no home office alternativa mais barata.

“Sendo assim, não acredito que esse perfil vá mudar. A tendência é que as pessoas estejam cada vez trabalhando em seus lares. Mas é necessário tomar cuidado para que isso não desencadeie a síndrome da gaiola e, consequentemente, ela vire um problema de saúde pública.”

O ideal, portanto, é que as famílias conversem com as crianças, com os jovens, passem segurança e não fiquem só recebendo notícias ruins. Vejam também os casos das pessoas que já se curaram e se baseiam nas questões da ciência, acreditando nos protocolos e sentindo segurança para se arriscar.

Assim, é possível voltar aos poucos à vida pré-pandemia. “Sabemos, no entanto, que terão algumas restrições e, sim, a perspectiva é de que transtornos mentais em decorrência do medo da pandemia serão muito comuns futuramente. Temos, portanto, de ficar atentos para, nos primeiros sintomas, buscar ajudar.”



receba nossa newsletter

Comece o dia com as notícias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, faça seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)