Informações imprecisas, fake news, polêmicas, discussões e, no outro lado, a ciência: no meio do fogo cruzado está o paciente. A COVID-19 é uma doença nova e o desconhecimento acerca dela é, justamente, um grande perigo. É consenso entre especialistas e autoridades de saúde que nenhum fármaco tem eficácia cientificamente comprovada no tratamento da infecção. Mas o assunto gera polêmica, já que uma parcela de médicos continua receitando alguns remédios no enfrentamento inicial da doença, o tratamento precoce chamado kit Covid – o Conselho Federal de Medicina (CFM), inclusive, recomenda que cada médico faça a prescrição conforme suas próprias convicções, e essa é uma decisão tomada em conjunto com o paciente.
Considerando os preceitos da liberdade de decisão individual, para o infectado, assim como a autonomia do médico, no cerne da questão está: como os médicos que se posicionam contrários ao kit Covid lidam com pacientes que chegam ao consultório pedindo o tratamento? E como pacientes que se recusam a acatar a prescrição de médicos que apoiam esse tratamento ficam diante da falta de opção para enfrentar a doença?
Assustados com o poder devastador do novo coronavírus e estimulados por grupos de WhatsApp e em redes sociais, que propagam fake news sobre os supostos benefícios do tratamento preventivo, muitas pessoas acabam procurando o kit Covid por conta própria ou solicitando ao médico uma receita para fazer uso de medicamentos que não têm comprovação científica. Nesses casos, além de não evitar a contaminação nem conseguir a cura, ainda correm o risco de efeitos colaterais graves e, por vezes, fatais.
O fato é que a vacina é considerada a forma mais efetiva de enfrentamento do coronavírus, além das medidas de distanciamento social, uso de máscaras de proteção e higienização das mãos com álcool em gel. O coquetel de medicamentos, defendido desde o começo da pandemia pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, vem sendo prescrito mesmo sem aprovação de autoridades de saúde e sanitárias dentro e fora do país. São fármacos conhecidos e já aplicados para outras patologias. O kit Covid vai em sentido contrário a orientações científicas, das autoridades sanitárias e de órgãos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Usados indiscriminadamente, em doses altas e não indicadas, e sem o devido acompanhamento, esses remédios elevam o risco de agravamento do quadro clínico para quem usa, e relatos de efeitos adversos graves aparecem todos os dias. São pacientes levados à fila de transplante de fígado, com insuficiência renal aguda, hemorragia ou problemas de coração, por exemplo, entre tantas outras complicações muitas vezes fatais. Na outra ponta, quem segue a ciência muitas vezes enfrenta resistência, às vezes até com violência, de quem crê nos boatos. Aumentam os casos de médicos sendo atacados depois da recusa em indicar o kit Covid.
EXPERIÊNCIA
O virologista Flávio Fonseca, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), está diretamente envolvido com a pandemia, com as novidades e notícias científicas e com a discussão relativa a diferentes aspectos da COVID-19, inclusive sobre o tratamento precoce, o uso ou não de drogas não específicas. Ele trabalha no Centro de Tecnologia em Vacinas (CT Vacinas), na universidade, e vem se debruçando sobre o estudo da pandemia.
Na vida pessoal, ele passou por uma experiência em particular – a família não ficou incólume à infecção. Há quase um mês, seus pais foram infectados. Não foi possível internar o pai, e a mãe esperou um tempo até conseguir uma vaga para internação. Enquanto os dois ainda eram tratados em casa, Flávio, os irmãos e primos, em consenso, resolveram recorrer a um médico para uma teleconsulta particular para avaliar o estado de saúde da mãe.
"Já me recusei a prescrever os remédios, sempre que o paciente ou os familiares pediam. Tento entender a demanda e apenas explico que, além de os medicamentos não terem efeito positivo contra o coronavírus, podem resultar em eventos adversos graves"
Gerson Salvador, infectologista e membro do comitê técnico de infectologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP)
O virologista lembra que foi um profissional muito bem recomendado, que tinha know-how na linha de frente, tratando vários pacientes com COVID-19. "Ao final do atendimento, o médico prescreveu para minha mãe ivermectina e colchicina, duas drogas que fazem parte desses tratamentos precoces que estão sendo muito criticados."
Em conjunto, os parentes, em um primeiro momento, ponderaram sobre a decisão. "Um dos meus irmãos estava propenso a acatar a recomendação do médico, mas eu argumentei exatamente o contrário. Expliquei que não havia nenhuma indicação científica palpável, falei sobre as razões pelas quais médicos que utilizavam o racional científico não indicavam esse tratamento precoce, que, ao contrário do que vinha sendo veiculado, havia indícios de piora dos quadros dos pacientes sendo tratados dessa forma, por causa de efeitos adversos indesejáveis", conta.
O virologista lembrou ainda que, conforme estudos publicados em revistas científicas sérias, de maior circulação, o tratamento precoce não causava impacto no resultado da infecção. "Se melhora ou piora, é independente do tratamento precoce. Disse que não havia nenhuma razão para expor meus pais a um tratamento com potencialidade, na verdade, para agravar a condição de saúde deles."
A escolha, dessa maneira, foi por não usar os remédios. No fim das contas, a mãe precisou ser internada, mas evoluiu muito bem, sem o tratamento precoce e teve alta. O pai continuou em casa, não precisou ser hospitalizado, faz oxigenioterapia e caminha para o final da infecção, também sem os medicamentos do kit Covid. "Os dois têm comorbidades e são idosos. Para nós, ficou claro que a não utilização desse tratamento precoce foi uma coisa boa na resolução do caso deles", diz Flávio.
CRÍTICO FERRENHO
O infectologista Gerson Salvador, ligado à Universidade de São Paulo (USP), trabalha no time de combate à pandemia na capital paulista, onde integra o comitê técnico de infectologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da universidade (FMUSP). Ele é um crítico ferrenho do kit Covid. Conta que é constante a ida de pacientes e familiares ao seu consultório pedindo o tratamento precoce, muitas vezes guiados por informações que recebem ou encontram pelas redes sociais, grupos ou aplicativos de mensagem, ou mesmo de outros médicos.
"Já me recusei a prescrever os remédios, sempre que o paciente ou os familiares pediam. Tento entender a demanda e apenas explico que, além de os medicamentos não terem efeito positivo contra o coronavírus, podem resultar em eventos adversos graves. A quase totalidade das pessoas compreende, agradecendo pelo esclarecimento", relata.
O médico teve contato, por exemplo, com casos de efeitos colaterais gerados por anticoagulantes. “Era uma paciente de 40 anos com COVID confirmada usando dose alta do anticoagulante enoxaparina e outros medicamentos em casa. Veio com piora respiratória e com sangramento de origem pulmonar.”
Ele também lembra de situações em que os pacientes, ao tomar as drogas do kit Covid e julgar estarem protegidos de um agravamento da doença, demoram muito a procurar um hospital e quando o fazem já estão em estado gravíssimo. “Atendi um paciente que estava tomando cloroquina e usando oxigênio em casa. Ele chegou azul. Tive de intubá-lo na hora”, relembra.
Epidemiologista do Hermes Pardini e professor na Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (Faseh), José Geraldo Leite Ribeiro reitera a falta de evidências e certeza sobre os benefícios do kit Covid. Pelo contrário, o que fica claro é a ineficácia.
Ele também alerta sobre os perigos da automedicação. Ir à farmácia, comprar e tomar um remédio por conta própria, como para qualquer problema de saúde, é extremamente complicado – muitas vezes, a pessoa pode estar com outra doença e pensa que é COVID-19, além de contraindicações. Farmacêuticos, inclusive, têm observado receitas falsas, com a prescrição em grandes quantidades, sem seguir a recomendação da bula, em doses jamais testadas em humanos.
Mas, sobre profissionais que indicam o tratamento precoce para o coronavírus, José Geraldo diz que os respeita. "Eu não prescreveria, mas não me cabe julgar a atitude dos colegas. É fundamental procurar assistência médica e confiar na conduta do médico", pondera.