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Estado de Minas

O Coringa que te habita: filme levanta questões sobre máscaras humanas

Impulsionado por 11 indicações ao Oscar e agraciado com duas estatuetas, filme que conta a história do supervilão arrebata fãs no mundo provoca reflexão


postado em 17/02/2020 11:00 / atualizado em 17/02/2020 11:59

Um filme que se arrisca a refletir sobre o anti-herói já merece atenção. No caso de Coringa, de aplausos, pela construção do personagem interpretado por Joaquin Phoenix com direção de Todd Phillips. A película marca um novo capítulo na trajetória do palhaço do crime que ficará eternizada. Ela é tão impactante que suscitou uma série de discussões sobre as relações humanas consigo mesmo, com o outro, com a sociedade como um todo.

Adjetivos como transgressor e corajoso não são exageros ao acompanhar a nova versão da história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) que trabalha como palhaço (Happy) para uma agência de talentos e, toda semana, precisa comparecer a uma agente social, devido aos seus conhecidos problemas mentais. Após ser demitido, Fleck reage mal à gozação de três homens em pleno metrô e os mata. Os assassinatos iniciam um movimento popular contra a elite de Gotham City.

Na 92ª edição do Oscar, que ocorreu no último domingo, no Dolby Theatre, em Los Angeles, Califórnia, o Coringa, filme com maior número de indicações para a celebração de 2020, 11 no total, saiu com duas estatuetas: trilha sonora para Hildur Gudnadottir, a primeira mulher a vencer nessa categoria; e, claro, melhor ator para Joaquin Phoenix e sua espetacular interpretação.

No discurso, ativista, vegano e defensor da justiça, ele mandou seu recado: “Acho que o maior presente foi a oportunidade de usar a nossa voz no lugar de quem não tem voz”. Emocionado, citou uma letra que, aos 17 anos, recebeu do irmão (o ator River Phoenix, que era um astro e morreu tragicamente de overdose na saída de uma boate, onde Joaquin, o irmão mais novo, estava como seu convidado), na qual ele dizia “corra atrás do seu coração que a paz virá”.

Para Olinta Fraga, psicóloga junguiana, o filme personificado por Joaquin Phoenix trouxe à tona a questão das máscaras sociais ou persona, esse último termo do teatro grego apropriado pelo psiquiatra Carl Gustav Jung para falar do arquétipo da persona, um modo de ser universal. “Desde tenra idade, as crianças percebem os modos de funcionar que agradam ou desagradam aos adultos e, instintivamente, procuram fortalecer esses e conter outros aspectos de si mesmas que acreditam as levarão à rejeição. Ali se inicia a formação da persona ou máscara social, uma das facetas de nossa personalidade e instrumento necessário de relação.”

Conforme a psicóloga, a questão torna-se patológica em indivíduos inseguros (e somos muitos), pois esses tendem a se identificar com uma persona. “Como exemplos: a identidade profissional, um nome de família tradicional, o colega bonzinho que nunca dirá um 'não', o sujeito 'feliz' que sempre alegra a festa de alguém, o herói que sempre se submete a situações de risco etc.

Temos várias personas ou máscaras sociais porque exercemos inúmeras funções sociais: pai, mãe, filho, cônjuge, profissional, vizinho etc. E, naturalmente, utilizamos essa máscara social. Porém, no desejo crescente de agradar, ocorre de nos ajustarmos demais a essa máscara e nos distanciar proporcionalmente do que nos é genuíno, causando uma enorme cisão entre mundo interior e atitudes exteriores.”

Nossas dores 

No entanto, destaca Olinta Fraga, a psique é autorreguladora e impulsionará ao reconhecimento do que está na penumbra inconsciente e a uma ação coerente à realização pessoal. “Para isso, essa vai usar dos sonhos. Os sonhos, ao modo junguiano de análise, apontam os desvios por meio de 'charges' simbólicas diárias. Contudo, na modernidade eles têm sido descartados.

As manifestações psicossomáticas podem ser mais uma tentativa de comunicação do inconsciente apontando incoerências e surgem as alergias, enxaquecas, fibromialgia etc. E, infelizmente, o custo da negação de nossa natureza pode levar à explosão de patologias mentais: manias, depressões, pânico etc. Assim, como no plano individual necessitamos integrar à consciência o que está no inconsciente, sendo esse um processo infinito, no plano coletivo, também os párias sociais necessitam ser integrados à sociedade. E a negação dessa ação provocará situações sociais doentias”.

Para Leonardo Torres, psicoterapeuta junguiano e doutorando em comunicação, o filme, no mínimo, gostando ou não, é intrigante: “Seu impacto causou tanta estranheza que muitos se perguntaram: quem é e onde está o Coringa da vida real? Consequentemente, muitos dedos foram apontados aos políticos, aos marginalizados etc. A resposta mais convincente foi dada por um colega da psicologia, José Balestrini, que apontou que o Coringa é, simplesmente, o coringa: ou seja, uma máscara que cabe em todos nós”.

Nossa felicidade 

Na análise do psicoterapeuta, a outra face do Coringa é o palhaço Happy (Feliz): “Ele quer trabalhar, é dedicado, tenta ganhar o seu dinheiro, sonha em ser um astro, ou melhor, ter reconhecimento. Isso é, como sinônimo disso tudo, ser feliz. Essa descrição corresponde à grande parte da sociedade atual. A busca da felicidade como sinônimo de sucesso, dinheiro e poder é um imperativo no mundo.

Porém, essa busca gera uma expectativa tão grande na sociedade, que muitos indivíduos hoje, ao não conseguir alcançá-la, usam medicamentos para suportar a frustração da vida. Ou partem às drogas ilícitas. Para, no fim, tentar espantar a angústia de não ser feliz, ou então, sentir alguma coisa que se compare ao que se espera da tal felicidade. A questão é que felicidade não é sinônimo de dinheiro, sucesso, poder e muito menos da sensação de estar drogado. A psicologia analítica entende que não é possível estar em um estado de felicidade sem, frequentemente, enfrentarmos um estado depressivo”.

Para Leonardo Torres, quem nega os sentimentos que julga negativos acaba por torná-los frequentes e maiores. “Uma medicação ajuda a anestesiá-los, mas não os elimina. Basicamente, é juntar todos esses sentimentos negativos, trancá-los no porão da mente e colocar uma música alta para não nos distrair de suas vozes. Mas as vozes crescem e, no fim, ou se aumenta a dose dos medicamentos ou eles derrubam a porta que os segurava no porão.

Se aceitássemos nossas tristezas em pequenas doses diárias, conseguiríamos também ser felizes em doses diárias. Mas, vai além disso, tomar a própria tristeza para si faz com que ela seja um mecanismo para o caminho da felicidade. Sendo necessário sempre ressignificar, ou seja, enxergar tristezas e frustrações como aprendizado para o próximo passo da vida.”


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