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Estado de Minas CENÁRIO

Haiti: da esperança à desordem permanente

O Haiti é a rota de um constante tornado de más notícias: epidemia de cólera, furacões, terremotos devastadores e vários períodos de instabilidade política


19/07/2021 06:00 - atualizado 15/07/2021 15:39

Moïse ganhou inimigos na oposição e entre antigos aliados. O homem mais protegido do país não conseguiu evitar a própria morte(foto: AFP/TIMOTHY A. CLARY)
Moïse ganhou inimigos na oposição e entre antigos aliados. O homem mais protegido do país não conseguiu evitar a própria morte (foto: AFP/TIMOTHY A. CLARY)
Nas primeiras horas da manhã do último 7 de julho, os jornais de todo o mundo noticiaram o assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse e os graves ferimentos da primeira dama, Martine Moïse. A notícia chocava pela violência do ato, mas pouco surpreendia. A instabilidade política no país é mais recorrente que estabilidade política. 


Um cenário, quase análogo, há 106 anos, o assassinato do presidente haitiano, Jean Vilbrun Guillaume Sam (o 6º chefe de estado, em quatro anos) em julho de 1915, levou o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, a enviar milhares de fuzileiros navais ao Haiti para, supostamente, manter a ordem - e por lá ficaram até 1934. 

A retirada norte-americana não foi acompanhada pelo fim da influência econômica e política dos ianques sobre o vizinho caribenho nas décadas seguintes. Isso explica o apoio dos EUA à ditadura Duvalier. O anticomunismo do ditador serviu de justificativa, principalmente, após a Revolução Cubana (01/01/1959), que havia ocorrido exatos 155 anos depois da independência haitiana (01/01/1804).

As mudanças geopolíticas globais dos anos 80 somadas às tensões sociais, crises econômicas, corrupção, juntamente com a deterioração da ordem constitucional levaram ao fim da trágica experiência que ocorreu no país durante a Guerra Fria. 

Mas a esperança depositada em Aristide não durou muito e, em 2004, foi obrigado a se retirar do país sem que deixasse um cenário mais estável. O desenvolvimento de grupos de poder não democráticos e as incertezas sociais e políticas foram fundamentais para que a ONU aprovasse uma Missão de Estabilidade no Haiti (MINUSTAH). 

A Missão de Estabilidade foi autorizada com a participação de milhares de  soldados e policiais civis. O Brasil contribuiu com o maior contingente de tropas para a MINUSTAH. Durante 13 anos, o Brasil esteve à frente da missão de paz da ONU no país (2004-2017).

A busca, principalmente, por uma vaga no Conselho de Segurança da ONU levou o então Presidente Lula a assumir essa responsabilidade. O General Augusto Heleno, atual ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), foi primeiro comandante da missão. 

Mas as denúncias de abusos cometidos pela força de paz, a manutenção da violência e a impunidade no país levaram a ONU a pedir uma alteração do comando do exército brasileiro no Haiti.  Com um certo constrangimento, o Presidente Lula substituiu o General Augusto Heleno, em setembro de 2005. Para muitos, a partir daí o general veio a se tornar um ferrenho militante antipetista.  Seu sucessor, o General Urano Bacellar, suicidou-se quatro meses depois, durante o exercício de chefia da missão.  

Apesar da instabilidade em que o país vivia, em 2006 (após as tentativas fracassadas de realizar as eleições dos anos anteriores), Reneé Préval foi eleito presidente, com pouco mais de 51% dos votos. Préval encontrou um país descapitalizado. As promessas externas de apoio financeiro não se haviam concretizado. 

Segundo ele, em um pronunciamento na Assembleia Geral da ONU, o capital da ajuda financeira beneficiava mais as corporações e fornecedores dos países de origem desse dinheiro, com os acordos que eram firmados, que o próprio Haiti.  Poucos desses recursos chegavam, de fato, aos haitianos. 

Em 12 de janeiro de 2010, um terremoto de 7.0 na Escala Richter matou, aproximadamente, de 230.000 pessoas, feriu mais de 200.000 e deixou mais de 1,5 milhão de desabrigados. Estimava-se que cerca de 3 milhões de pessoas viviam na capital, Porto Príncipe. Este terremoto, considerado o pior desastre da história do Haiti, agrava, ainda mais, as condições socioeconômicas internas.

Assim que a tragédia ocorreu,  os EUA viram a oportunidade de grandes ganhos e assumiram a reconstrução do país. Os norte-americanos já buscavam investir no país, atraídos pela mão de obra barata, principalmente, para o setor têxtil. O governo dos EUA enxergava grandes possibilidades financeiras. Em mente, sempre, os lucros que poderiam ser obtidos pelos investidores. 

Quando o presidente Préval tentou aumentar a hora de trabalho de 0,22 para 0,62 centavos de dólar, funcionários da Embaixada dos EUA, apoiados por Hillary Clinton, então Secretária de Estado do governo Obama, pressionam o governo para impedir o aumento, alegando que desencorajaria os investimentos. Sob pressão, o governo aprovou um novo acordo que estipulava a hora de trabalho em 0,38 centavos de dólar!

O Haiti continuava em ruínas, desemprego e doenças se alastravam pelo país. A missão da ONU permanece no país depois da destruição provocada pelo tremor.  O ônus herdado dessa missão foi devastador para a sofrida população. A ONU disseminou uma doença desconhecida na ilha, o Cólera se espalha entre os haitianos.  

A doença foi levada pelas missões da ONU para o país. A comitiva nepalesa é acusada de ser a transmissora da doença. O código genético do embrião encontrado no Haiti é similar ao encontrado no Nepal. Estima-se que 50 mil haitianos morreram de cólera. A doença nunca havia sido registrada no país. 

Assim, como ocorreu recentemente no Brasil com a pandemia da Covid-19, a chefia da ONU e o controle da doença cabiam aos generais do Brasil.  Os responsáveis pelo controle da doença foram, totalmente, ineficazes. A falta de responsabilidade e eficiência do exército brasileira na área da saúde é antiga. Como dizia Caetano, o Haiti é aqui. 

As eleições conturbadas ocorreram onze meses depois: mesmo com o país destroçado após o terremoto, o Haiti realizou a eleição presidencial. Centenas de milhares ainda estavam desabrigados e os locais de votação em ruínas, mas os Estados Unidos e seus aliados estavam pagando pela eleição e insistiram que ela continuasse. O processo foi um caos no primeiro turno, com motins nas ruas e candidatos acusando uns aos outros de manipulação e fraude.

A confusão eleitoral aumentou as frustrações dos americanos com Préval; eles culparam sua recalcitrância e ceticismo sobre a intervenção estrangeira pelo lento ritmo de reconstrução. 

A embaixada dos EUA atiçou a chamas abertamente, dizendo que os resultados eleitorais oficiais conflitavam com uma pesquisa patrocinada pela União Europeia. As autoridades americanas, então, pressionaram Préval a tirar o candidato de seu partido do segundo turno e substituí-lo por Michel Martelly, que havia ficado em terceiro lugar no primeiro turno.

Martelly, um cantor pop bastante popular, que já foi caracterizado como o favorito dos bandidos que trabalharam em nome da odiada ditadura da família Duvalier, antes de seu colapso em 1986,  foi a escolha de Washington para vencer. Pressionado, o Presidente cedeu aos interesses dos EUA e Martelly saiu vitorioso. Hillary Clinton teve um papel fundamental nos resultados dessa eleição ao impedir que a população escolhesse livremente seus líderes. 

Michel Martelly apoiava, entusiasticamente, projetos de investimentos externos e mostrava-se também receptivo à orientação de políticos estrangeiros na condução do seu governo, a "tempestade perfeita" para os interesses de Clinton no Haiti. Durante seu governo,  muitas obras foram realizadas, mas era acusado de beneficiar a elite e de se afastar das comunidades mais pobres. 

No poder, Martelly nunca realizou uma eleição. Quando saiu, apenas 11 líderes haviam sido eleitos por voto popular. Seu governo era descaradamente corrupto (foi acusado de desviar capital destinado à reconstrução do país) e a maioria dos aliados estava envolvido em ações criminosas, que iam de tráfico de drogas a sequestros. Os que se opunham ao regime desapareciam, misteriosamente. Martelly criou uma rede de tráfico, abuso de poder e impunidade. 

Em 2016, o presidente foi obrigado a renunciar, mas escolheu a dedo seu sucessor, Jovenal Moïse, assassinado agora em julho. Seu mandato seria de cinco anos, mas chegou ao poder um ano depois, em 2017. Nesse mesmo ano foi acusado de lavagem de dinheiro.

O atraso do início do seu mandato, garantia, segundo Moïse, o direito de permanecer mais um ano no poder. Seus opositores discordavam. O presidente governava por decreto desde o início de 2020, depois que adiou as eleições legislativas. O mandato que se encerraria em 2021 foi estendido por um ano, com o apoio do Departamento de Estado dos EUA. Uma tentativa de retirá-lo do poder resultou em algumas dezenas de presos. 

O coronavírus agrava ainda mais o cenário (o Haiti não aplicou, até hoje, uma única dose da vacina). O caos afunda o país à medida que as gangues (que o próprio presidente criou para espalhar o medo e evitar as manifestações) se disseminavam pela capital, Porto Príncipe. 

Desde então, uma crise constitucional, marcada por violentos confrontos entre gangues, explodiu no país mais pobre do Hemisfério Ocidental. O presidente tentava mudar a constituição do Haiti, com novas cláusulas que poderiam alicerçar um governo autoritário e prolongar sua permanência no poder. A sombra dos Duvalier voltava à memória da população, 35 anos após seu fim, com a saída forçada de "Baby Doc", em 1986. 

Moïse ganhou inimigos na oposição e entre antigos aliados. O homem mais protegido do país não conseguiu evitar a própria morte. As investigações sobre as verdadeiras causas do assassinato, talvez nunca sejam descobertas. 

A prisão de Christian Emmanuel Sanon (63), um médico haitiano, com supostas pretensões políticas, que chegou ao país no último mês com 26 mercenários colombianos (ex-militares da Colômbia, considerados experientes, após meio século de conflito de guerrilha, são contratados por empresas de segurança em todo o mundo) e dois americanos de origem haitiana é o principal suspeito. O FBI acompanha todo o processo. 
 
Até o momento, não há saída aparente da crise política. Pelo menos três homens reivindicam a liderança. Existem apenas 10 legisladores no parlamento, depois que os mandatos dos membros da câmara e da maioria dos senadores expiraram e nenhuma nova eleição foi realizada. O presidente da Suprema Corte, que poderia ter resolvido a disputa, morreu da Covid-19 no mês passado.

O país desce, novamente, ao inferno...Ai de ti, Haiti. 

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