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Estado de Minas PADECENDO

Cultura do estupro: a vítima não é ouvida

O abusador faz um vídeo se vitimizando e vamos mudar de assunto. Até que outro vídeo desses apareça


08/08/2021 04:00 - atualizado 08/08/2021 10:47

(foto: Depositphotos)

Eu tinha 12 anos, era um fiapo de gente, bem magrinha, corpo bem infantil , cabelinho chanel, de franja. Estava com algumas colegas a caminho da sala de artes no colégio. Naquele corredor havia vários meninos um ano mais velhos. Formavam um corredor humano, e teríamos que passar entre eles para chegar até a sala.

Nesse percurso, um deles me pegou por trás, me levantou do chão e ficou me exibindo para os demais falando algo que não me recordo. Eu me debati, xinguei, esperneei e ele me soltou após receber um golpe nas partes baixas.

Nunca mais me esqueci daquela sensação. Um nojo, uma raiva . Ninguém fez nada para me ajudar. Todos olhavam. Apenas olhavam. E riam. Aconteceu em 1987.

Anos mais tarde, já na faculdade, semanalmente eu era obrigada a passar por um corredor de marmanjos da engenharia quando saía da última aula do no Prédio 15 da PUC. As estudantes de arquitetura iam sair da sala e eles se distribuíam de forma estratégica para assobiar e falar besteiras.
 
Toda mulher sabe como é desagradável ser obrigada a passar entre vários homens que agem como urubus na carniça querendo provar sua masculinidade para os demais.

Outro dia me deparei com um vídeo com uma cena repulsiva . Um homem, numa ocasião festiva, pegava uma menina de biquíni. Ele chegava por trás, passava a mão direita nas costas dela que, incomodada com esse primeiro toque, leva sua mão esquerda para afastar a mão do homem do seu corpo.

Nesse momento, ele usa a outra mão para tocar os seios dela, seios infantis de uma pré-adolescente . Ela o empurra e ele sai como se nada tivesse acontecido. Só que, se em 1987 ninguém filmou a cena do garoto me agarrando, em 2021 tudo é filmado. Aquela cena foi parar nas mídias sociais .

Para o espanto de muita gente, os amigos e até os pais da garota, apareceram defendendo o cidadão de bem: “amigo da família”, “como se fosse um parente”. A negação não me surpreende. Já vi isso acontecer inúmeras vezes.

Não é fácil aceitar que sua filha foi molestada debaixo do seu nariz e você não a protegeu. Seus olhos veem a cena e negam. Mas no fundo você sabe, a verdade está ali.

Alguém ouviu a menina? Alguém perguntou se ela estava desconfortável com a situação? Alguém perguntou se ele já havia feito isso antes? Se ali, na frente de todos ele fez aquilo, será que ele fazia outras coisas quando ninguém estava olhando?

A criança às vezes se incomoda com esse tipo de ação, mas não sabe como agir. Tem vergonha de falar. Sabe que aquilo a incomoda, mas não sabe que é abuso sexual e precisa ser denunciado.

Quantas mulheres assistiram àquele vídeo e se identificaram com a menina, por que já passaram pela mesma situação?

O homem disse que o vídeo estava fora de contexto. Eu pergunto: em que contexto cabe um homem adulto pegar uma menina por trás e passar a mão no seio dela? Em que contexto isso é admissível? Em nenhum! Nenhum contexto. Nem se fosse uma mulher adulta. Nem se ele fosse da idade dela. Não há desculpas para um gesto tão repugnante!

O vídeo é assustador, e ver tantas celebridades saindo em defesa do sujeito é ainda mais descabido. Mas ilustra muito bem a cultura do estupro. A vítima não é ouvida, o abusador faz um vídeo se vitimizando e vamos mudar de assunto. Até que outro vídeo desses apareça.

Se você julgou a menina porque ela estava usando biquíni, isso é cultura do estupro. Se você acha que ela se colocou naquela situação, você culpa a vítima. Se você assistiu ao vídeo e não viu nada demais, você precisa tirar o filtro dos seus olhos.

Mais de 70% da violência sexual contra crianças acontece dentro de casa, familiares e amigos íntimos da família. A maior parte das crianças que sofre abusos sexuais não têm noção do que está acontecendo.

Nosso papel, como pais e educadores, é criar mecanismos para que as crianças saibam se proteger, saibam identificar quando algo errado acontece com elas e procurem ajuda. Se a ajuda não vem do pai ou da mãe, ela pode vir da escola, de um profissional de saúde. Escute as crianças!


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