Num dos anos mais dramáticos da história, falar sobre roupas poderia soar esdrúxulo. Mas, para as grifes da São Paulo Fashion Week, que começou na última quarta-feira e foi até ontem, domingo (8), é a hora de mostrar como a moda pode se desgarrar dos rótulos de ser um setor acéfalo, racista e consumista.
Produzir os vídeos exibidos on-line pelo evento e em projeções pela cidade foi um desafio sem precedentes. Uma das estreias deste ano, a Aluf, da estilista Ana Luisa Fernandes, usou a matéria-prima da coleção que havia desenvolvido no início do ano – a marca é conhecida por defender atitudes sustentáveis.
"Muitas marcas estavam desenvolvendo coleções para um outro momento do mundo. Conseguimos remanejar o que tínhamos, em vez de fingir que nada daquilo havia sido criado", afirma Fernandes.
Mesma ideia teve Juliana Jabour, que voltou à SPFW com 40 looks com estampas de esportes como beisebol, basquete e futebol americano. Os temas têm a ver com a parceria com a marca de bonés New Era.
"Quando paralisamos tudo, as pessoas que colaboram comigo ficaram sem trabalho. Então, mais do que nunca, o desfile foi necessário", diz Jabour. Ela adaptou parte das peças que estavam prontas, retirou as mais pesadas, para o desfile ter uma cara de verão, e manteve os traços do punk vinculados à própria história. Olhar para o sistema, repensar formatos e reafirmar os códigos estéticos da moda foi o lado mais visível desta SPFW.

O estilista Isaac Silva, da nova geração de designers que investigam a cultura brasileira sob o prisma da diversidade racial, chamou a própria equipe para vestir as peças no vídeo que mostrou no domingo.
As criações são uma homenagem ao orixá Iemanjá e também à avó, Jacira, que morreu neste ano e o ajudou a entender mais sobre a moda.
"É uma coleção de agradecimento por tudo que passei nesses meses de isolamento, quando não sabíamos o que esperar, e a marca estava no amarelo, sem caixa", disse ele.
Sua homenagem, repleta de alfaiataria suntuosa, malharia e flores, se destacou em colaborações com a artista Jacqueline Paes e a designer Neon Cunha, ativista da luta por reconhecimento dos transexuais.
Assim como em diversas semanas de moda, como as de Milão e Paris, que passaram a pôr em primeiro plano a sustentabilidade e a inclusão racial e de gênero, a SPFW se preparou para uma nova fase.
Ela é orquestrada pela organização junto ao coletivo Pretos na Moda e procurou fazer com que os desfiles se tornassem multirraciais e respeitassem mais os profissionais dos bastidores.
Metade dos modelos no evento agora deve ser negra, indígena ou afrodescendente, sob pena de exclusão pelo descumprimento da regra. A medida foi a primeira oficializada de um projeto mais amplo de inclusão e reconhecimento desses segmentos antes apagados nas passarelas.
Talvez uma das estreias desta São Paulo Fashion Week, que prometeu resumir todas essas mudanças no sistema da moda numa única apresentação, foi a Misci, do estilista mato-grossense Airon Martin.
O designer estreou na semana de moda com a coleção Brasil Impúbere, com um vídeo gravado no distrito de Atafona, em São João da Barra, no Rio de Janeiro, uma área que vem sendo engolida pelo mar e virou metáfora do descaso com o meio ambiente.
Nas cenas, protagonizadas pela modelo de ascendência indígena Emilly Nunes, as roupas foram feitas com matéria-prima brasileira. Uma delas foi de seda rústica produzida no Paraná, de onde vêm alguns dos fios desse tecido, considerado dos melhores do mundo.
"O papel da moda hoje é trazer o usuário para a reflexão sobre este país, que precisa de amadurecimento, de se reconhecer e, a partir disso, evoluir", afirmou o estilista.