A maior região produtora de café do mundo, no triângulo desenhado pelas cidades de Três Pontas, Três Corações e Cordislândia, desponta para o mundo como o mais novo terroir para a produção de vinhos nobres, principalmente com uvas syrah, sauvignon blanc, cabernet sauvignon e cabernet franc. O embrião do polo vitivinicultor encravado no campo experimental da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig), em Caldas, nasce do êxito da técnica de dupla poda, desenvolvida pelo engenheiro agrônomo Murillo Albuquerque Regina, PhD em vitivinicultura e enologia pela Universidade Bordeaux, na França, que promoveu o toque de midas nas videiras, até então capazes apenas de produzir vinhos populares. No estado do café, da cachaça e das cervejas artesanais – a ‘Bélgica brasileira’ –, agora é a vez do voo de Baco.
Nesta que é a única adega enológica experimental do Sudeste brasileiro, o Núcleo Tecnológico Uva e Vinho da Epamig, é oferecido suporte técnico para a vitinificação. “Funcionamos como incubadora no processamento de uvas de cerca de 20 produtores mineiros e de outros estados, principalmente de São Paulo e do Rio de Janeiro”, explica Isabela Peregrino, enóloga da Epamig. Entre 2015 e 2016 esse “laboratório” do campo de Caldas elaborou 90 mil litros entre tintos, brancos e espumantes, seja em experimentos, na produção própria ou de terceiros, com a técnica de inversão do ciclo. Desde o início do projeto, há 17 anos, já foram produzidos ali cerca de 2,5 milhões de litros.
Vinhos premiados nacional e internacionalmente impulsionam o currículo do projeto, iniciado em 2000, num estado em que desde o século 19 a uva produzida era utilizada apenas para consumo in natura e para vinhos populares, de mesa. O prêmio Decanter World Wine Award 2017, organizado pela revista inglesa Decanter, uma das mais tradicionais publicações sobre vinhos no mundo, é prova disso. Entre os 27 vinhos brasileiros premiados em Londres, cinco são elaborados com o emprego da nova técnica. Eles foram avaliados junto a outros 17 mil vinhos produzidos em todo o mundo por 219 experts, 65 mestres de vinhos e 20 mestres sommeliers.
“Não foram as primeiras premiações que recebemos”, diz Isabela Peregrino, enóloga da Epamig. Na Grande Prova de Vinhos do Brasil em 2016, a técnica da dupla poda respondeu com o título de melhor branco ‘Chardonnay’ do país, faturado pela Casa Verrone Speciale Chardonnay, de Divinolândia (SP). Já na edição brasileira do concurso mundial, em Bruxelas, em 2016, recebeu a medalha de prata pelo ‘Brandine’, safra 2013, e o ‘Brandine’, safra 2015, da Vila Santa Maria (SP), com cortes de cabernet sauvignon e cabernet franc. Há menos de duas semanas, a técnica de reversão da safra, segundo a qual a vindima acontece no inverno, levou o Top Ten da Expovinis 2017, realizado em São Paulo, com o Casa Verrone Speciale Syrah, safra de 2015.
CICLO O insight do pesquisador do Murillo Alburquerque Regina para a idealização da técnica da dupla poda, que inverte o ciclo da videira, se deu quando fazia doutorado na França e, numa das aulas, ouvia a exposição de que as melhores regiões do mundo para o cultivo da uva apresentavam tempo seco, noites frias e dias ensolarados, o que descreve bem a região do Sul de Minas, nas proximidades da Serra da Mantiqueira. Sem perder de vista a experiência do botânico francês Auguste Saint Hilaire, que em 1819, ao cortar as montanhas mineiras daquela região, já registrava a superioridade das uvas colhidas no inverno em relação àquelas do verão, Murillo Albuquerque Regina entendeu que precisava desenvolver uma técnica que “enganasse” a planta. Seria necessário inverter o ciclo biológico da videira, para que começasse a amadurecer em maio e ser colhida em julho.
Em 2003 Murillo Alburquerque Regina implantou o parreiral experimental em Três Corações, na Fazenda Maria da Fé, com o emprego do novo método, que consiste na realização de duas podas, uma de formação dos ramos em agosto, e a outra de produção em janeiro. A combinação dos elementos do terroir – tempo seco, dias ensolarados e noites frias – promovem a colheita de uma uva de maturação plena, com mais aroma, maior concentração de cor.
A experiência se expandiu. Por conta disso, enquanto no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, principais estados produtores de uvas e vinhos do Brasil, neste momento em que se inicia o inverno, faz-se a poda das videiras. Já no Sudeste brasileiro, a partir do Sul de Minas, as vinhas entram em fase de colheita.
UM INTRUSO QUE DEU CERTO
Para alguns produtores, a aventura de Baco, em princípio, foi uma forma de diversificar a produção, numa região nascida para plantar café, que concentra o maior número de árvores por metro quadrado do mundo e responde por quase um terço da produção brasileira: a elevada altitude e temperatura média anual proporcionam grãos com sabores ácidos levemente cítricos e aromas frutados. Para outros, contudo, a decisão de se lançar em experimentos com vinhedos foi inspiração nascida de uma circunstância da vida. “Sou a quinta geração da família no ramo do café. Mas eu tive há 10 anos um infarto. Como sempre fui cervejeiro, o médico avisou: cerveja não faz mal ao coração, mas vinho faz bem”, revela Eduardo Junqueira Nogueira Júnior, da Fazenda Capetinga, em Três Pontas, no Sul de Minas, produtora do vinho ‘Maria Maria’, segundo ele batismo em homenagem não apenas à composição de Milton Nascimento, mas a todas as Marias do mundo.
O primeiro plantio ocorreu em 2009. Uns poucos milhares de vinhas – 10 mil pés de syrat, 6 mil pés de sauvignon blanc e 4 mil pés de cabernet sauvignon –, em meio a um mar de mudas de café. “Quando nós começamos a plantar aqui, primeiro que eu não sabia se a parreira ia crescer. Segundo não sabia se ia dar frutos, depois não sabíamos se o fruto daria vinho e se o vinho seria bom. Mas depois que a gente toma um vinho desses que estamos tomando, todas essas perguntas estão sendo respondidas”, afirma Eduardo Junqueira Nogueira Júnior. O projeto não só deu certo, como já no primeiro concurso internacional, o Decanter World Wine Award 2017, o vinho ‘Maria Maria Bel Sauvignon Blanc’, safra de 2015, foi o vencedor da categoria bronze. “Aplicamos a técnica da poda invertida, desenvolvida pelo Murillo Alburquerque Regina, da Epamig, que até hoje nos dá suporte técnico”, explica o produtor, salientando que por enquanto, a vitinificação é toda feita no campo experimental da Epamig, em Caldas.
O que para o pai foi um acidente da vida, para o filho, Eduardo Junqueira Nogueira Neto, da sexta geração cafeicultura, o projeto integra um planejamento iniciado há duas décadas, destinado à diversificação. “Hoje plantamos 2 mil hectares de áreas de cereais. Temos há 15 anos campo de hortaliças em que trabalhamos com alface americano para processamento. E agora em 2009 surgiu a ideia das uvas para fazer vinhos finos”, explica ele pelo vídeo institucional da Fazenda Capetinga.
Cada nova safra dos vinhos ‘Maria Maria’ trazem uma letra do alfabeto. A safra 2016 que será lançada agora, batizou o sauvignon blanc de ‘Cida’, o rosé de ‘Cláudia, e o syrat de ‘Cristina’. Projetos não faltam para esse produtor, que não consegue traduzir de pronto, em números, o investimento já feito na aventura de baco. “No vinho tudo é caro. Ainda mais que somos pioneiros. Nossas rolhas são portuguesas, os rótulos são do Rio Grande do Sul, as garrafas são chilenas e todo o equipamento enológico é importado”, explica ele. O consumidor que procura e encontra o ‘Maria Maria’, perceberá que os preços, na ponta, variam de R$ 78 a R$ 180, a depender do estado – pois a tributação varia. “Antes éramos caipiras. Hoje viramos agro. Mexo com tudo. Adoro tudo o que faço. Gosto de tudo. O vinho ainda não pagou todo o investimento. É de longo prazo. Potencial de Minas é muito grande e nós somos apenas a semente. Os pioneiros”, diz ele.
Pioneirismo
O Campo Experimental da Epamig em Caldas, no Sul de Minas, foi criado em 1936, vinculado ao Ministério da Agricultura. A unidade foi um dos três primeiros centros especializados em pesquisas sobre uvas e vinho do país, ao lado das estações experimentais de Caxias do Sul (RS) e Jundiaí (SP). Atualmente, a Epamig integra a estrutura da Secretaria de Estado de Agricultura, Agropecuária e Abastecimento.
Base econômica
O café constituiu a base da economia do Sul de Minas. É cultivado em cerca de 80% dos municípios da região. De todo o café produzido no Brasil, cerca de 30% saem das lavouras dessa região e do Sudoeste do estado. É um negócio que anualmente gera uma renda bruta de aproximadamente R$ 7 bilhões, somente na produção, promove cerca de 300 mil empregos diretos, somente na lavoura, segundo dados da Fundação Procafé. O clima chuvoso no verão e frio e seco no inverno, no período de colheita, favorece a produção nessa região mineira de cafés encorpados, com sabores ácidos levemente cítricos e aromas frutados.