O que leva um adolescente a cometer uma tragédia familiar?
Para a especialista em desenvolvimento infantil, é impossível entender tragédias na adolescência sem olhar profundamente para a infância
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Siga noO assassinato brutal de uma família por um adolescente de apenas 14 anos gerou comoção nacional e abriu espaço para reflexões urgentes. O que leva alguém tão jovem a cometer um ato tão extremo? Para a escritora, neurocientista e especialista em desenvolvimento infantil Telma Abrahão, a resposta é complexa e começa muito antes do crime acontecer.
“Todo mundo quer uma explicação rápida: psicopatia? Telas demais? Falta de limites? Mas precisamos ir mais fundo. A adolescência é consequência direta da infância. Não é possível entender esse tipo de comportamento sem olhar para tudo o que veio antes”, afirma.
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Apesar da psicopatia ser frequentemente citada em episódios como esse, Telma destaca que ela afeta apenas de 1% a 2% da população mundial. E, mesmo quando há predisposição genética, o ambiente tem um papel decisivo. “O que vivemos na infância molda profundamente o nosso cérebro. Vínculos seguros podem proteger. Mas traumas precoces, negligência, violência e abandono podem potencializar comportamentos extremos”, explica.
O cérebro infantil, segundo a neurocientista, precisa de alguns “nutrientes” emocionais para se desenvolver de forma saudável: previsibilidade, vínculo afetivo e co-regulação, ou seja, a presença de um adulto calmo que ajude a criança a lidar com as próprias emoções. “Quando isso falta, ou quando há sofrimento não reconhecido, o comportamento passa a ser o grito de socorro que ninguém ouviu”, diz Telma.
Ela alerta ainda para os sinais que muitas vezes são naturalizados ou ignorados: frieza emocional, crueldade com animais, ausência de culpa, mentiras constantes, isolamento extremo e falta de empatia. “Nem todo comportamento estranho é só uma fase. Muitas vezes, é dor profunda tentando se expressar”, ressalta.
O uso excessivo de telas também é uma preocupação. Para Telma, as telas em si não são vilãs, mas seu uso descontrolado e sem supervisão pode ser extremamente danoso. “Adolescentes isolados e sem vínculos afetivos sólidos buscam nas telas uma fuga emocional, dopamina fácil e até padrões tóxicos de comportamento. Isso afeta diretamente a empatia, a autoestima e a saúde emocional”.
Citando o estudo Adverse Childhood Experiences (ACE), que relaciona traumas infantis a riscos maiores de vícios, transtornos mentais, violência e criminalidade na vida adulta, Telma reforça: “98% dos casos como esse não acontecem por psicopatia. São histórias de dor, solidão e desorganização emocional que não foram vistas por tempo demais”.
A especialista defende uma abordagem mais consciente, empática e preventiva. “Nem todo agressor é um psicopata. Mas muitos foram crianças não vistas, não ouvidas, não amadas. Crianças que pediram ajuda com o silêncio, com o corpo, com atitudes que ninguém quis enxergar”, afirma.
Para ela, o caminho da transformação está no conhecimento. “Se todos os pais, professores e profissionais da saúde e educação fossem neuroconscientes, compreenderiam o impacto do ambiente familiar e escolar no cérebro da criança. E assim poderíamos prevenir muito mais do que imaginamos”, conclui.
"Essa tragédia não apenas choca, mas também escancara o que precisa ser revisto: o modo como a sociedade trata a infância. A dor que não é vista hoje pode explodir amanhã em forma de vício, violência e desespero. A prevenção começa quando os adultos decidem se reeducar para melhor educar."
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