Escritor Paul Auster em foto de 2006

 -  (crédito: RAFA RIVAS / AFP)

Escritor Paul Auster em foto de 2006

crédito: RAFA RIVAS / AFP

“O livro da memória”

Tradução de Rubens Figueiredo

 

“A primeira palavra só aparece em um momento em que nada mais pode ser explicado, em algum instante da experiência que desafia toda compreensão. Ser reduzido a não dizer nada. Ou então, dizer para si mesmo: é isto que me persegue. E então entender, quase no mesmo sopro de ar, que é isto que ele persegue.

 


Põe uma folha de papel em branco sobre a mesa, à sua frente, e escreve estas palavras com a sua caneta. Possível epígrafe para O Livro da Memória.

 

 


Em seguida, abre um livro de Wallace Stevens e copia a seguinte frase: ‘Diante de uma realidade extraordinária, a consciência toma o lugar da imaginação.’

 


Mais tarde, naquele mesmo dia, escreve sem parar durante três ou quatro horas. Depois, quando lê o que escreveu, só encontra um parágrafo dotado de algum interesse. Embora não esteja seguro sobre o que fazer com ele, resolve guardá-lo para uma referência futura e o copia em um caderno pautado.
Quando o pai morre, escreve ele, o filho se torna seu próprio pai e seu próprio filho. Olha para seu filho e vê a si mesmo no rosto do menino. Imagina o que o garoto vê quando olha para ele, e descobre a si mesmo se transformando em seu próprio pai. De forma inexplicável, fica comovido com isso. Não é apenas a visão do menino que o comove, tampouco o pensamento de se por dentro do pai, mas o que ele enxerga no menino do seu próprio passado desaparecido. É uma nostalgia da sua própria vida o que ele sente, talvez, uma recordação da própria infância, na condição de filho para o seu pai. De forma inexplicável, descobre a si mesmo a tremer naquele momento, tanto de felicidade quanto de tristeza, se isso é possível, como se estivesse indo ao mesmo tempo para a frente e para trás, rumo ao futuro e rumo ao passado. E há ocasiões, ocasiões frequentes, em que estes sentimentos são tão fortes que sua vida já não parece mais habitar o presente.”

 

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Trecho de “O livro da memória”, uma das três partes de “A invenção da solidão”, de Paul Auster. Lançado em 1982 nos EUA, “The invention of solitude” foi publicado no Brasil em 1999 pela Companhia das Letras, com tradução de Rubens Figueiredo