Venda Nova conta sua história por meio da arte
Projeto transforma espaços públicos em painéis que contam a origem e a cultura da região mais antiga que a capital mineira
compartilhe
SIGA
A história de Venda Nova, região mais antiga que Belo Horizonte, ganhou novas cores e novos contornos com o projeto “Colorindo Venda Nova”, que transformou muros, praças e viadutos da região em galerias a céu aberto. Idealizada pelo grafiteiro, muralista e morador da região Leonardo Snake, de 30 anos, a iniciativa leva arte urbana e história local a cinco pontos da regional. O projeto nasceu com o objetivo de resgatar a memória da comunidade vendanovense, valorizar sua identidade e reconhecer personagens e fatos que marcaram os mais de três séculos de sua existência.
Antes mesmo da fundação da capital mineira, em 1897, Venda Nova já era um arraial movimentado. Segundo o historiador Bruno Viveiros Martins, a origem da região remonta a 1711, quando tropeiros e viajantes que atravessam o sertão mineiro, vindos da Bahia e de Pernambuco, com destino às minas de ouro, nas cidades de Ouro Preto, Sabará e Mariana e paravam para descansar e negociar mercadorias às margens dos caminhos do Rio das Velhas e do Rio São Francisco.
Ali surgiram as primeiras “vendas”, pequenos comércios e hospedagens improvisadas nos quintais das casas. Com o tempo, o local passou a ser conhecido como Venda Nova. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, o arraial consolidou-se como ponto de apoio e abastecimento das rotas comerciais da Estrada Real.
“Esse caminho era longo, então o arraial de Venda Nova nasce ali, porque esses viajantes precisavam parar e descansar. Na região foram sendo criados as vendas e os armazéns para abastecer essas pessoas e posteriormente para abastecer outras localidades. Então, o vender novo ele vai crescer em função dessa atividade comercial. E aí a questão do nome é importante”, conta o historiador.
Ele lembra que a religiosidade e o comércio foram as bases da vida local. “A capela de Santo Antônio, erguida em 1809, e as feiras de gado moldaram o cotidiano da comunidade.”
Ao longo do século XVIII e XIX, Venda Nova pertenceu à comarca do Rio das Velhas, com sede em Sabará e fez parte da freguesia do Curral Del-Rei. Em 1949, foi incorporada à capital.
Com a expansão da cidade, a antiga Venda Nova perdeu parte de suas paisagens e referências históricas. O casario colonial deu lugar a avenidas largas e conjuntos habitacionais. O comércio de gado foi substituído pelo tráfego constante da Avenida Vilarinho, e o som dos sinos cedeu espaço às buzinas.
“Muitos moradores nem sabiam que o nome do bairro tem origem nessa história. Durante décadas, a memória da região ficou invisível. A cidade cresceu sobre ela e a história estava guardada apenas na lembrança dos mais velhos. Passando por esses muros todos os dias senti a vontade de reconectar os moradores à própria história. E tive a ideia de devolver a memória às ruas através da arte do grafite”, conta o artista.
História por meio da arte
Com apoio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte, o projeto “Colorindo Venda Nova” ganhou forma. Em cinco lugares espalhados pela região, cada mural resgata um período ou símbolo da história vendanovense, desde os tropeiros fundadores, passando pelo antigo CESEC Maria Vieira Barbosa, até os atuais trabalhadores da limpeza urbana da região.“Cada mural é um capítulo da história de Venda Nova. Juntos, eles formam uma narrativa visual que começa no século XVIII e chega aos dias atuais”, explica a gestora do projeto Nayara de Amorim Salgado.
O primeiro, entregue em 17 de março, ocupa o muro do antigo prédio do CESEC Maria Vieira Barbosa, na Rua Padre Pedro Pinto, 775. Nesse endereço foi inaugurado o Grupo Escolar Santos Dumont em 1933. O painel representa o prédio dessa antiga escola, uma homenagem ao antigo espaço educacional, símbolo de acolhimento, resistência e acesso à educação para jovens e adultos da periferia. “Ali foi mais do que uma escola, foi uma porta de entrada para o conhecimento e palco de sonhos, reencontros e recomeços. A educação foi um ponto de virada na vida de muita gente daqui”, conta o artista.
Entregue em 15 de junho, o segundo mural, localizado na Praça Santo Antônio, na Rua Padre Pedro Pinto, 576, presta homenagem ao padre que dá nome à via. Líder religioso e comunitário, o padre se destacou por seu trabalho pastoral e social, desde a década de 1920. Além de atuar religiosamente, o padre teve grande influência no desenvolvimento urbano e social da região. “Ele era o coração de Venda Nova, foi um grande símbolo de progresso e humanidade. Ajudou a fundar escolas, creches, centros de assistência e promoveu ações em defesa dos mais pobres. Além de ser o primeiro padre a tirar carteira de motorista. Na pintura quis mostrar o padre como movimento em seu Ford 1929.”
Com participação do artista Sérgio Ilídio, o terceiro mural foi entregue em 10 de agosto no muro do CESEC Venda Nova, na Avenida Vilarinho, 1.188. Dessa vez, a homenagem foi aos trabalhadores da Gerência Regional de Meio Ambiente (Germa), responsáveis pelo cuidado e manutenção da região. O painel exalta o trabalho cotidiano de homens e mulheres que, muitas vezes invisíveis, preservam o meio ambiente urbano e o espaço público. Em meio a tons de azul, figuras humanas aparecem cuidando da cidade. “São pessoas que fazem a cidade respirar, mas quase nunca são lembradas”, diz o artista.
O quarto mural com participação do artista Helly Costa, foi pintado no Viaduto da Avenida Vilarinho, ponto importante tanto para a mobilidade urbana quanto para a história local. Entregue em 27 de agosto, a arte mergulha nas origens históricas de Venda Nova. A imagem retrata um antigo ponto de parada de tropeiros nos séculos XVIII e XIX, onde os viajantes utilizavam rotas que seguiam o Rio das Velhas. A área onde hoje está o viaduto era parte desse trajeto comercial.
Encerrando o ciclo, o quinto mural, inaugurado em 5 de outubro, na Rua Madre Tereza, 455, presta homenagem aos tropeiros, que fundaram o povoado que deu início a ocupação de Venda Nova. Com participação do artista Ed-mun, o mural retrata as figuras históricas que, entre os séculos XVIII e XIX, percorriam longas distâncias transportando gado e mercadorias pelas rotas do Rio São Francisco e do Rio das Velhas, abastecendo os antigos povoados mineiros durante o ciclo do ouro. “Eles deram nome ao bairro e identidade à comunidade”, completa o artista.
Por trás das cores
Para o artista, o projeto é mais do que um trabalho estético é um ato de resistência cultural. Snake explica que quis levar arte a lugares de grande circulação e fácil acesso, rompendo com a ideia de que o grafite é uma arte marginal.
“Quis mostrar que o grafite é linguagem, história e identidade. Eu misturei o rústico através dos tons de cinza e preto ao moderno, com cores vibrantes criadas na hora da execução. Cada mural tem uma identidade única, um propósito. É arte feita pelo povo para o povo”, afirma.
O projeto levou cerca de três anos entre aprovação, pesquisa e execução. Durante esse tempo, o artista buscou acervos históricos, fotos antigas e relatos de moradores para garantir fidelidade às representações. “Passei quase um ano e meio estudando e pedindo autorizações. Não queria copiar imagens da internet, queria que tudo fosse verdadeiro”, explica.
“O Colorindo Venda Nova é um trabalho de educação patrimonial. Ele une pesquisa histórica, arte urbana e cidadania. O objetivo é que as pessoas conheçam, se orgulhem e cuidem do lugar onde vivem”, reforça Nayara.
Cada local foi escolhido estrategicamente em parceria com a Prefeitura de Belo Horizonte e com a equipe da Germa, que indicou pontos de grande fluxo. "Queríamos espaços visíveis, priorizando áreas de grande circulação, onde o grafite pudesse dialogar com o cotidiano, transformando o cinza em cor e reflexão. O muro debaixo do viaduto, por exemplo, virou uma pausa visual no meio do trânsito intenso da Vilarinho”, conta.
Ela ressalta ainda a importância de descentralizar o acesso à cultura: “Durante muito tempo, os grandes projetos culturais ficaram concentrados no hipercentro da capital. Venda Nova tem artistas, história e público, só precisa de oportunidade. A arte precisa ser democrática e acessível, ela não está só nos museus; ela mora nas ruas”, defende Nayara.
Lembranças nas paredes
Para o historiador Bruno Viveiros, os murais cumprem um papel que vai além da estética porque são instrumentos de memória coletiva. “O que Snake fez é o que chamamos de educação patrimonial. Ele levou a história para a rua, para o muro, para o olhar cotidiano. Isso é recordar”, explica.
Bruno destaca que os painéis unem passado e presente, conectando os viajantes de séculos atrás aos trabalhadores de hoje. “O grafite usa uma linguagem jovem e contemporânea para fixar na memória coletiva fatos e personagens que poderiam ser esquecidos. É arte que reconta a história e devolve identidade à comunidade.”
A arte como resistência
Para Leonardo Snake, o maior legado do projeto é inspirar novas gerações. “O grafite mudou minha vida e pode mudar a de muitos jovens. Comecei pintando muros com frases de protesto. Hoje, vejo que posso usar o mesmo spray para reconstruir a memória do meu povo. A arte é ferramenta de transformação quando nasce da rua e volta para ela. E quando eles veem um artista da própria região ocupando o espaço público, entendem que a periferia também produz arte de qualidade.”
Siga nosso canal no WhatsApp e receba notícias relevantes para o seu dia
Em meio ao barulho dos ônibus e à pressa das avenidas, Venda Nova redescobre sua história. Cada mural é um convite a olhar para o entorno com mais cuidado. As paredes agora contam histórias de fé, de luta, de trabalho e de esperança.
A região vista com outros olhos
Para Nayara Amorim, o maior resultado é o impacto humano: “A arte devolveu autoestima. As pessoas voltaram a olhar para os lugares com carinho, perceberam que fazem parte de algo maior.”
Snake concorda: “Venda Nova sempre foi vista como periferia, mas é berço de história e cultura. Agora, isso está estampado nas ruas. É um museu a céu aberto, feito por quem vive aqui.”
*Estagiária sob supervisão da subeditora Juliana Lima