Era tarde de 17 de junho deste ano, uma quinta-feira, quando o aposentado Caetano Vieira da Silva, de 81 anos, saiu para comprar um pacote de massa corrida. Nunca voltou. Ao atravessar uma avenida empurrando um carrinho de mão, foi atropelado por um motoqueiro, que, além de estar em alta velocidade e na contramão, empinava a moto na pista. Com o impacto, o idoso sofreu trauma cranioencefálico e vários outros ferimentos. Foi socorrido no hospital, mas morreu 27 dias depois.
“Nossa família ficou destruída. Sentimos uma dor que não passa nunca”, afirma a gerente comercial Kátia Patrícia Rodrigues Silva, filha do aposentado, atropelado perto de sua casa, no Bairro Alterosa, em Montes Claros, cidade polo do Norte de Minas. Dor semelhante e pelo mesmo motivo é sentida por milhares de famílias brasileiras a cada ano: o país registra média de 5 mil mortes anuais por atropelamento de pedestres, considerando dados de 2022 e 2023, de acordo com levantamento do Ministério da Saúde. Conforme a pasta, os números de 2024 ainda não foram fechados, mas dados preliminares indicam que a tendência se mantém, com o registro de pelo menos 4,7 mil vítimas.
Segundo o Ministério da Saúde, 75% das vítimas de atropelamentos são homens. As faixas etárias mais afetadas são pessoas a partir dos 20 anos, que representam um grupo de risco crescente, com mais de 30% dos casos. Em Minas Gerais, o perfil é parecido, com destaque para homens entre 40 e 79 anos.
O preço da violência
Além do impacto emocional e humano, que não pode ser medido em números, os atropelamentos acarretaram despesas altas para o Sistema Único de Saúde (SUS) com gastos de assistência às vítimas. Os pedestres integram o segundo grupo mais afetado por acidentes de trânsito no país, ficando atrás apenas dos motociclistas em número de internações nas emergências do SUS, segundo a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet).
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Os custos do atendimento hospitalar às vítimas de atropelamentos na saúde pública somaram R$ 60,7 milhões em 2022 e R$ 68,2 milhões em 2023. O relatório relativo a 2024 ainda não foi fechado, mas dados preliminares indicam que as despesas continuam elevadas, chegando a pelo menos R$ 61,9 milhões.
De acordo com as estatísticas do Ministério da Saúde, no ano passado foram registradas 32,8 mil internações de pedestres traumatizados em acidentes nos hospitais conveniados ao SUS no país. Nos dois anos anteriores foram 39,2 mil (2023) e 36,6 mil (2022). “Os dados representam o número de internações realizadas e não o de pessoas atendidas, pois um mesmo indivíduo pode ter sido atendido mais de uma vez”, esclarece a pasta.
“As lesões no trânsito são um grave problema de saúde pública mundial. Para minimizar seus impactos, o Ministério da Saúde apoia iniciativas intersetoriais que envolvem governo e sociedade civil, com foco na segurança viária, transporte seguro, sinalização e proteção das rodovias. Essas ações devem ser complementadas pelos órgãos de trânsito e integrar setores como educação e planejamento urbano”, sustenta a pasta governamental.
Uma assassina em disparada
Da mesma forma que contribui para batidas, capotagens e outros acidentes fatais, a alta velocidade no trânsito, combinada com outras formas de imprudência, tem forte influência nas perdas de vidas de pedestres. “A velocidade tem papel central na ocorrência dos atropelamentos e, sobretudo, na gravidade”, afirma o professor José Elievam Bessa Júnior, do Departamento de Engenharia de Transportes e Geotecnia da Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“Um veículo em movimento possui uma energia associada que é proporcional ao quadrado da velocidade, ou seja, um acidente a 60 km/h é mais de duas vezes mais grave do que um acidente a 30 km/h. Outra razão é a visibilidade (longitudinal e periférica), que é bastante comprometida com o aumento da velocidade, aumentando a probabilidade de ocorrência de atropelamentos por, simplesmente, incapacitar o motorista de evitar o acidente”, observa.
O professor salienta que, diante dessa realidade, “cidades comprometidas com a segurança viária dos entes mais vulneráveis tendem a ter velocidades regulamentares baixas”. “Só para dar um exemplo: é muito comum que cidades do Reino Unido tenham velocidades máximas permitidas de 20 milhas/h (um pouco mais de 30 km/h). O Brasil precisa repensar esses limites de velocidade em área urbana, por meio de um debate sério e livre de correntes políticas e ideológicas”, recomenda o especialista.
Mais velocidade, menos sobrevida
Presidente da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), o médico Antônio Meira Júnior reforça o peso do excesso de velocidade na gravidade dos atropelamentos. “Quanto maior a velocidade no momento do impacto, menor a chance de sobrevivência da vítima. Para se ter uma ideia, um pedestre atropelado a 30 km/h tem grandes chances de sobreviver, mas, se a velocidade for de 60 km/h, a probabilidade de morte ultrapassa 80%. Isso ocorre porque a energia transferida ao corpo do pedestre cresce exponencialmente com o aumento da velocidade, tornando os traumas muito mais graves”, explica o especialista.
Segundo ele, os atropelamentos no Brasil ocorrem majoritariamente nas vias urbanas, onde há maior circulação de pedestres e, muitas vezes, ausência de infraestrutura adequada para travessias seguras. “É nesse ambiente que o risco se multiplica, principalmente quando há desrespeito aos limites de velocidade e falta de fiscalização”, pontua.
E quem corre mais riscos?
Pessoas de idade mais avançada, como o aposentado Caetano Vieira Silva, que morreu após atropelamento em junho, aos 81 anos, constituem o grupo mais vulnerável de vítimas desse tipo de acidente. “Os idosos são mais vulneráveis, assim como as crianças e os adolescentes, muitas vezes por falta de supervisão e por ter dificuldade de antever os riscos e, por consequência, os potenciais acidentes. A participação dos idosos no perfil de mortes por atropelamentos é alta, maior do que o percentual de participação na população em geral”, afirma o professor José Elievam Bessa Júnior, do Departamento de Engenharia de Transportes e Geotecnia da UFMG.
Por isso, destaca o especialista, pedestres da terceira idade precisa ser tratados de forma mais cuidadosa no trânsito, por meio de estratégias de prevenção voltadas especificamente para eles. Entre essas medidas diferenciadas, o professor lista como exemplos sinalização adequada (inclusive sonora) e semáforos com tempos de travessia maiores.
“Além dos idosos, adultos jovens (até 60 anos) também tendem a ter uma grande participação nos atropelamentos graves por se exporem mais, em função de serem economicamente ativos. Homens de baixa renda e que moram em regiões periféricas têm sofrido mais, o que evidencia a falta de soluções específicas para esse grupo de pedestres”, destaca José Elievam Bessa Júnior.
Mesmo representando uma fatia menor das internações, idosos vítimas de atropelamentos têm risco muito maior de morte ou de sequelas graves, afirma o presidente da Abramet, Antônio Meira Júnior. Ele lembra que, em 2023, ocorreram no Brasil 6.274 mortes de pessoas com mais de 60 anos no trânsito, a maior parte relacionada a atropelamentos. “Isso se deve à fragilidade física típica do envelhecimento, à menor capacidade de reação diante de situações de risco e à recuperação mais difícil após traumas. É um grupo que precisa de atenção redobrada em políticas de segurança no trânsito”, reitera o profissional de medicina de tráfego.
Onde mais pedestres se acidentam?
A maioria das mortes por atropelamento no país ocorre em áreas urbanas, com maior circulação de pessoas. O problema também está relacionado à falta de infraestrutura adequada para travessia das vias. “É nesse ambiente que o risco se multiplica, principalmente quando há desrespeito aos limites de velocidade e falta de fiscalização”, afirma Antônio Meira Júnior.
Na opinião do professor José Elievam Bessa Júnior, o Brasil ainda precisa avançar bastante no desenvolvimento de infraestrutura voltada para o pedestre. “É comum encontrar calçadas malconservadas, ausência de passarelas e de faixas de travessia, além de haver tempo de travessia reduzido em semáforos”, observa o especialista da UFMG.
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Por outro lado, ele salienta que a mudança desse panorama sofre resistência da sociedade, devido à cultura de priorização do automóvel. “Soluções como o aumento de calçadas em detrimento do espaço voltado para veículos tendem a gerar um grande debate, mesmo que os malefícios para os automóveis sejam bastante reduzidos. É uma lógica invertida, que só vai mudar com políticas públicas comprometidas e que busquem informar a população sobre boas soluções que melhorem a qualidade de vida de todos, e não somente de uma parcela da sociedade”, avalia.
“Apesar de o comportamento de motoristas e pedestres ter influência nos acidentes, acredito muito que o ambiente (a infraestrutura inadequada) tem forte influência na ocorrência dos atropelamentos”, completa José Elievam Bessa Júnior. Ele lembra que, no meio urbano, os acidentes com pedestres tendem a ocorrer em locais onde há demanda maior por travessias, como pontos de ônibus e vias com velocidade elevada (acima de 40 km/h) e baixas condições de acessibilidade.
“Também ocorrem próximo a locais que geram muitas viagens, como hospitais, escolas e universidades”, assinala o representante da UFMG, lembrando ainda que as ocorrências são mais registradas em períodos de pico no trânsito, pela manhã (das 6h às 9h) e tarde/noite (das 17h às 20h). “Acidentes após as 20h tendem a ter uma gravidade aumentada em função das velocidades veiculares maiores e da deficiência, por vezes, da iluminação pública”, acrescenta.
