Conquistas LGBTQIA+: prontos para a adoção de filhos e muito mais
Dez anos após decisão histórica no STF, ao menos 569 pessoas não heterossexuais estão na fila para se tornarem pais ou mães no Brasil
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Dez anos depois de o direito de um casal gay adotar filhos sem restrições de idade e gênero ter sido reconhecido no Supremo Tribunal Federal (STF), a constituição de uma família por meio desse processo está no radar de pelo menos 569 pessoas LGBTQIA+ consideradas hoje pretendentes ativos para adoção no Brasil.
Uma possibilidade que se soma à lista de conquistas da comunidade, que ano após ano celebra e reivindica direitos em paradas como a que ocorre neste domingo em Belo Horizonte (20/7), desta vez com foco no envelhecimento dessa parcela da população. Apesar de já estar pacificada pela Justiça, a questão da adoção ainda enfrenta preconceito, avalia especialista, enquanto uma pesquisa aponta queda no percentual de brasileiros que apoiam a igualdade de direitos nesse ponto.
Amparada por decisões do STF tomadas em 2011 e 2015 (leia a “memória”), a possibilidade de adoção permitiu a concretização do sonho de pessoas como Regina Helena Alves da Silva, que se tornou mãe de dois filhos junto da esposa Silvia Esteves. Para outros, representa a garantia de poder realizar o desejo mais adiante, como no caso do casal Marcello Augusto de Oliveira e Luciano do Nascimento, hoje na lista de espera.
Atualmente, há 32.988 pretendentes ativos para adoção no Brasil, de acordo com dados de 17 de julho do Painel de Monitoramento do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Desse total, 559 se identificaram como homossexuais, 9 como bissexuais e 1 como assexual, totalizando 569 pessoas da comunidade LGBTQIA+. Heterossexuais totalizaram 5.162, enquanto 27.183 pessoas não informaram a orientação sexual ou preferiram não responder e 74 marcaram “outro”. Para todos, o processo de adoção é o mesmo.
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A garantia de igualdade independentemente da orientação sexual do casal está amparada por decisões da Justiça. Entre elas, o reconhecimento do Supremo Tribunal Federal (STF) de uniões homoafetivas como núcleo familiar em 2011, por meio da equiparação das relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres; e a decisão da ministra Carmen Lúcia de manter a autorização judicial para a adoção de crianças por um casal de homens do Paraná, em 2015.
Além disso, em 2023, o plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNPJ) aprovou uma resolução que determina aos tribunais e à magistratura o combate a qualquer forma de discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero nos processos de habilitação de pretendentes e nos casos de adoção de crianças e adolescentes, guarda e tutela.
PRETENDENTES EM MINAS
Em Minas Gerais, dos 4.324 pretendentes ativos de adoção, 62 se declararam parte da comunidade LGBTQIA+. Entre eles, estão Marcello Augusto de Oliveira, de 38 anos, assistente de direção superior, e o marido dele, Luciano do Nascimento, técnico de T.I, de 53. O casal, que mora em Belo Horizonte, está na fila de espera para adotar desde março do ano passado. “Nasci para ser pai. Desde sempre eu disse que tinha que ter uma família”, conta Marcello. Para ele, a adoção sempre foi o caminho a ser seguido. “Há muitas crianças precisando de carinho no mundo”, defende.
Marcello e Luciano esperam adotar uma criança de até 4 anos, sem preferência de gênero ou etnia, com aceite de “doenças tratáveis”. Nos preparativos para a paternidade, que pode virar realidade a qualquer momento, Marcello conta que participa de um grupo de pais LGBT+ e lê muito sobre o assunto. Além disso, já participou do programa de preparação para adoção do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e obrigatório no processo de habilitação para se tornar pretendente à adoção.
Vivendo uma mistura de ansiedade para se tornar pai, a inquietude da responsabilidade que terá ao criar um filho, o reconhecimento de que é preciso ter paciência e a certeza que o momento certo virá, Marcello afirma com convicção: “Estou pronto”.
A adoção também faz parte dos planos de Janderson Campos, de 35, gerente de projetos em uma empresa de móveis planejados. Ele ainda não deu início ao processo, mas pretende começar em breve. Há 10 anos, Janderson chegou a dar entrada nos trâmites, mas decidiu esperar mais um pouco, o que ele avalia ter sido positivo para aquisição de mais maturidade. Homossexual, ele sonha em ser pai de duas crianças e pretende exercer a paternidade sozinho.
Processo de habilitação
O programa de preparação para adoção é uma das etapas no processo de habilitação que precede a entrada da pessoa ou casal interessado em adotar na fila de espera, que no caso de Marcello Augusto de Oliveira durou cerca de um ano. O programa tem como objetivos oferecer o efetivo conhecimento sobre adoção, tanto do ponto de vista jurídico quanto psicossocial; fornecer informações que possam ajudar para uma decisão mais segura; preparar os pretendentes para superar possíveis dificuldades na convivência inicial com a criança/adolescente; orientar e estimular à adoção interracial, de crianças ou de adolescentes com deficiência, com doenças crônicas ou com necessidades específicas de saúde, e de grupos de irmãos, de acordo com o CNJ.
A habilitação também tem como etapas a apresentação e análise de documentos, que serão remetidos ao Ministério Público, — como comprovante de renda e de residência; atestados de sanidade física e mental; e certidão de antecedentes criminais — e a avaliação realizada por uma equipe técnica multidisciplinar do Poder Judiciário. Nessa fase, o objetivo é conhecer motivações e expectativas dos candidatos, analisar a realidade sociofamiliar, se eles estão aptos a receberem uma criança ou adolescente, entre outros.
Por fim, a partir do estudo psicossocial, da certificação de participação em programa de preparação para adoção e do parecer do Ministério Público, o juiz profere a decisão de habilitação ou não do pretendente.
Sonho realizado
Outras pessoas LGBTQIA+ já concretizaram o sonho. “É a melhor coisa que tem no mundo. Ainda bem que eu fiz isso na vida”, conta Regina Helena Alves da Silva, de 67, mãe de Pedro, de 15, e Maria Eduarda, de 14, junto da esposa Silvia Esteves, de 64. Foi em 2011 que elas procuraram mais informações sobre o processo de adoção e deram início aos trâmites para aumentar a família. Elas foram um dos primeiros casais homoafetivos em Minas Gerais — e no Brasil — a passar por esse processo.
À época, Regina conta que ela e a esposa optaram por adotar duas crianças, entre 1 a 5 anos, e não tinham preferência de gênero, algo diferente do desejado por muitos outros candidatos à adoção. Ela, que é historiadora, relembra como a busca por meninos, especialmente depois dos 3 ou 4 anos, era drasticamente menor.
Nessas circunstâncias, e depois de passarem pelo extenso processo, Regina e Silvia conheceram os filhos, naquela época com idades de 3 e 1 ano e meio. Ela relembra que chegaram a ir a outro abrigo e esperaram bastante, mas quando visitaram Pedro e Maria Eduarda, tiveram a sensação narrada por muitos adotantes: “Bati o olho e vi: são eles”, afirma a historiadora.
O casal conseguiu a guarda das crianças em julho de 2012. A adoção oficial foi registrada em 2015. Nesses 13 anos exercendo a maternidade, Regina conta ter experienciado “a melhor coisa”, mas também enfrentado desafios. Entre eles, o de aprender a ser mãe de crianças já “com uma certa compreensão do mundo e da vida” e cuidar delas sem o conhecimento de antecedentes, como possíveis doenças. “Tem uma diferença de você não ter o domínio da história, você vai construindo a história a partir daquilo”, afirma Regina.
DISCRIMINAÇÃO
“Embora o procedimento seja o mesmo na letra da lei para todo mundo, na prática pode haver preconceito velado ou resistência por parte dos técnicos, dos juízes, que pode tornar o processo mais lento, mais desgastante para esses casais (homoafetivos)”, avalia Nislândia Santos Evangelista, mestre em Educação e docente dos cursos de Pedagogia e Psicopedagogia na Uniasselvi. A profissional acredita também que o preconceito pode ser enfrentado em contextos sociais.
A afirmativa da docente é ancorada pela pesquisa da empresa Ipsos sobre questões envolvendo a comunidade LGBTQIA+. O relatório revelou que no Brasil houve uma diminuição de sete pontos percentuais na parcela de entrevistados que concordam que casais homoafetivos devem ter os mesmos direitos dos heterossexuais no processo de adoção quando comparados os anos de 2025 e 2021. Neste ano, 62% dos mil entrevistados concordaram com a igualdade, já em 2021 o total foi de 69%.
Uma diminuição nessa questão também foi registrada na média dos resultados considerando 23 países, incluindo o Brasil. Em 2025, 59% dos entrevistados concordam que casais homoafetivos devem ter os mesmos direitos dos heterossexuais no processo de adoção. Em 2021, o total era de 64%.
ACOLHIMENTO
Sobre possíveis preconceitos enfrentados na jornada para adoção, Marcello Augusto de Oliveira afirma que no caso dele e do marido não houve discriminação pela orientação sexual. Ele diz que eles não sofreram qualquer tipo distinção no processo e foram respeitados e acolhidos. Quando deu entrada nos papéis para início do processo há 10 anos, Janderson Campos conta que também se sentiu respeitado e acolhido. Para ele, o receio é que os filhos sofram preconceito por terem um pai gay.
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Já Regina Helena Alves da Silva conta que ela e a esposa foram respeitadas, acolhidas e devidamente orientadas nos trâmites de guarda, mesmo tendo sido um dos primeiros casais homoafetivos a realizar esse processo em Minas Gerais. No entanto, a historiadora conta que elas foram alvo de homofobia em outras ocasiões, como quando ela foi pegar as novas certidões de nascimento dos filhos, após a adoção oficial, e a escrivã do cartório se recusou a assinar, ou quando uma vizinha chamava a polícia alegando que o casal estaria maltratando as crianças.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Rachel Botelho
MEMÓRIA
Sem restrições
Em 5 de março de 2015, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Cármen Lúcia (foto) negou recurso do Ministério Público do Paraná e manteve decisão que autorizou a adoção de crianças sem limites de idade ou gênero por um casal homoafetivo. A primeira instância da Justiça já havia concedido o direito da adoção, mas estipulou um critério: o casal só poderia adotar menina e que tivesse mais de 10 anos de idade. O casal achou a delimitação discriminatória e recorreu. O Tribunal de Justiça do Paraná entendeu que a adoção seria livre, sem perfil de criança, mas o Ministério Público estadual recorreu às instâncias superiores. Na sua decisão, a ministra argumentou que o conceito de família não pode ser restrito por se tratar de casais homoafetivos. A decisão de Cármen Lúcia foi baseada em outra, tomada pelo plenário do Supremo, que reconheceu, em 2011, por unanimidade, a união estável de parceiros do mesmo sexo.