SERVIÇO DOMÉSTICO

Empregada doméstica: quando o presente insiste em repetir o passado

Doze anos depois da aprovação da PEC das Domésticas, que deveria ter garantido os direitos básicos, empregadas ainda vivenciam cenário de abusos

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Maria* (nome fictício) cozinha, limpa, lava, passa e cuida das crianças da casa onde vive e trabalha há mais de 30 anos. Não recebe salário. Em troca do serviço diário, ganha moradia, comida e, vez ou outra, algumas roupas usadas. O que poderia soar como um retrato de 1850, quando a escravidão ainda era legalizada no Brasil, é, na verdade, o retrato das condições em que uma trabalhadora doméstica foi resgatada em Belo Horizonte neste mês.

 “A frase que a gente mais ouve é: 'Ela é como da família'. Mas na verdade são privadas de todos os direitos que os demais membros da família têm”

Cynthia Saldanha
Auditora fiscal e subcoordenadora do combate ao trabalho análogo ao de escravo e coordenadora regional do projeto de fiscalização do trabalho doméstico em Minas Gerais

Na ocasião do Dia Nacional da Empregada Doméstica, celebrado em 27 de abril, histórias como a dela escancaram as marcas de um ofício marcado pela invisibilidade e exploração. Mais de 70% das trabalhadoras ainda estão nessa condição, sem acesso a direitos básicos como férias remuneradas, INSS ou jornada regulamentada — ou mesmo sem qualquer garantia de direitos fundamentais, como é o caso de Maria.

A identidade da mulher de 63 anos, resgatada por auditoras fiscais do trabalho ligadas ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), bem como o bairro onde o caso ocorreu, são mantidas em sigilo para protegê-la das múltiplas violências e riscos que ainda enfrenta no período pós-resgate. Segundo a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, que repassou o caso ao Estado de Minas, ela passou mais de três décadas usando roupas doadas pelos empregadores, vivendo sob as ordens de um núcleo familiar liderado por um advogado. Trabalhava sem jornada definida, sem direito a fins de semana, feriados ou férias. A exploração era contínua e institucionalizada no cotidiano doméstico.

A equipe de fiscalização também registrou episódios de violência psicológica, assédio moral e condições degradantes de moradia. Ela dormia em um cômodo minúsculo, aos fundos da casa, sem ventilação adequada. Questionados, os empregadores alegaram que ela era “tratada como da família”. Mas nem mesmo a própria vítima se reconhecia como tal. A realidade é que a exploração se sustentava sobre a extrema vulnerabilidade da mulher: uma vida de privações desde a infância, histórico de maus-tratos, rompimento de vínculos familiares, baixa escolaridade e ausência de acesso a serviços básicos de saúde. Sua força de trabalho foi trocada, por décadas, apenas por abrigo e alimento.

Maria é o espelho do perfil de trabalhadoras encontradas em condições análogas à escravidão: mulheres pretas ou pardas, com baixa escolaridade, vínculos familiares frágeis ou inexistentes, muitas vezes entregues ou “doadas” ainda na infância a famílias que as criam sob a lógica da servidão. “Eu nunca resgatei uma mulher branca. Sempre mulheres pretas ou pardas. Normalmente, começaram a trabalhar ainda crianças, muitas sem nunca ter frequentado uma escola. E têm a falsa ideia de que fazem parte da família. A frase que a gente mais ouve é: 'Ela é como da família'. Mas na verdade são privadas de todos os direitos que os demais membros da família têm", relata a auditora fiscal Cynthia Saldanha, subcoordenadora do combate ao trabalho análogo ao de escravo e coordenadora regional do projeto de fiscalização do trabalho doméstico em Minas Gerais.

Fiscalização do trabalho doméstico ainda é recente em Minas e começou de forma contínua apenas no ano passado

Fiscalização do trabalho doméstico ainda é recente em Minas e começou de forma contínua apenas no ano passado

Agência Brasil/Divulgação

Fiscalização ainda é recente

Minas Gerais está entre os estados com maior número de denúncias de trabalho análogo à escravidão. Desde o emblemático caso de Madalena Gordiano, resgatada em 2020 após mais de 40 anos nessa condição, o volume de denúncias aumentou significativamente. Mais do que combater o trabalho escravo, a superintendência vem atuando para garantir condições dignas ao trabalho doméstico. "Não há nada mais seguro para conter esse cenário de analogia à escravidão do que a gente promover o trabalho doméstico decente, digno, e sem violência”, afirma Cynthia.

Ela ressalta que a fiscalização do trabalho doméstico ainda é um campo recente dentro da inspeção do trabalho, iniciada de forma contínua em Minas apenas no ano passado. Em nível nacional, as fiscalizações integram a Campanha pelo Trabalho Doméstico Decente, vigente desde 2022. “Os próprios empregadores se surpreendem. Dizem: ‘Eu não sabia que vocês fiscalizam casas, só empresas’. A gente tem conseguido marcar uma presença fiscal em uma atividade que nunca foi fiscalizada. Isso já é um ganho, apesar de não conseguirmos chegar em um número muito grande de trabalhadores dado a nossa incapacidade humana mesmo. Nós somos um número muito pequeno de auditores fiscais de trabalho para fiscalizar um número tão grande de trabalhadores”, explica Cynthia.

Hoje, Minas contabiliza cerca de 9,2 milhões de trabalhadores informais, conforme estimativas divulgadas pela delegacia sindical em Minas Gerais do Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho. As fiscalizações do trabalho doméstico no estado se concentram em municípios como Belo Horizonte, Nova Lima, na Grande BH, Juiz de Fora, na Zona da Mata, e Uberlândia, no Triângulo Mineiro, com vistorias em condomínios verticais e horizontais. Nessas abordagens, a fiscalização orienta os empregadores e, quando necessário, aplica sanções relacionadas à formalização, jornada, salários, FGTS e demais obrigações previstas na PEC das Domésticas, aprovada em 2013.

A partir dessas fiscalizações, os empregadores são notificados a apresentar documentos no domicílio eletrônico trabalhista (CET), para comprovar a regularidade da relação de trabalho. Ainda sem dados consolidados, já que a campanha se encerra em maio, a superintendência informou ao Estado de Minas que já identificou empregadas domésticas sem registro formal, ausência de controle de jornada, salários e 13º pagos com atraso, férias não comunicadas previamente e FGTS recolhido fora do prazo legal.

O foco da campanha de 2025 é o controle da jornada de trabalho. Pela Lei Complementar 150, de 2015, o empregador deve registrar a jornada da trabalhadora pelo eSocial. Entradas, saídas e intervalos devem ser anotados, e horas extras, pagas ou compensadas. Na prática, segundo Cynthia, essa exigência é quase nunca cumprida. "Eles até apresentam folhas de ponto. Mas todas com os horários 'britânicos': entrada todo dia às 8h, saída às 14h, sem variação. E a gente sabe que aquilo ali é um ponto fictício, inclusive ele não tem validade jurídica, nem para fiscalização e nem para uma eventual ação trabalhista, porque ninguém chega todo dia 8h e sai todos os dias às 16h. As variações de horário devem aparecer nesse controle de ponto”, esclarece.

Trabalho digno

Marcilene Romano dos Santos, de 45 anos, enxerga na carteira de trabalho assinada um símbolo de avanço, um direito que, mesmo tardio em sua trajetória, precisa ser garantido a todas as mulheres da categoria. Começou aos 17, na cidade de Ubá, na Zona da Mata mineira, como babá. Trabalhou por oito anos na casa da primeira patroa, depois mais dois em outra residência. Em nenhuma das experiências ela teve carteira assinada, apesar de seus pedidos constantes. “Eu pedia para assinarem a carteira, mas ficavam enrolando. Diziam que iam ver isso depois, que ainda estavam decidindo. Nunca acontecia”, conta.

A primeira vez que teve o nome oficialmente registrado como trabalhadora doméstica foi apenas depois de se mudar para Belo Horizonte, em 1997. Desde então, não voltou mais à informalidade. Hoje, já trabalha há 17 anos na casa de uma família no Bairro Alto Barroca, na Região Oeste de BH, onde entra às 7h e sai por volta das 15h30. Para ela, o que vivencia hoje na capital é um contraste com os tempos em que trabalhava no interior. “Comecei porque uma prima falou que estava precisando de uma pessoa, parei de estudar, acabei ficando na profissão. Aqui (em Belo Horizonte) a maioria é carteira assinada. Não conheci nenhum que fica sem carteira assinada”, afirma.

Hoje, com vínculo formal e direitos garantidos, Marcilene é a prova de que o trabalho doméstico pode — e deve — ser exercido com dignidade, segurança e reconhecimento. Sua história contrasta com a da maioria, mas serve de exemplo do que é possível quando se respeita a lei e a trabalhadora. Ela destaca que o 27 de abril, Dia Nacional da Empregada Doméstica, deve ser visto como afirmação da importância da categoria para o país. “A gente vê como um dia de luta, a gente vê também como um dia de conquista” declara.

A filha de Marcilene tem hoje a mesma idade que a mãe tinha quando começou a trabalhar como empregada doméstica. Foi ela quem a incentivou a voltar a estudar. “Ela ficava no meu pé. Dizia: ‘Mãe, volta a estudar, você consegue, nunca é tarde’. Aí eu fui”, lembra Marcilene. Moradora do Bairro Serra, Marcilene então passou a frequentar, à noite, as aulas da Educação de Jovens e Adultos (EJA). E não pretende parar por aí. “Quero fazer um curso profissionalizante, inglês, informática”, enumera.

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Apesar de não ser vista como uma primeira opção de carreira, o trabalho doméstico é a única oportunidade de emprego para muitas mulheres, como foi para Marcilene. Aos olhos da legislação, há uma década as trabalhadoras domésticas brasileiras deveriam ter os mesmos direitos que os demais trabalhadores: jornada máxima de 44 horas semanais, hora extra remunerada, acesso a FGTS, seguro-desemprego, salário-família, adicional noturno e proteção previdenciária. No papel, tudo está assegurado. No cotidiano, três em cada quatro trabalhadoras seguem invisíveis à lei. Dados da PNAD Contínua do IBGE revelam que, em 2024, 76,4% das profissionais da área ainda não tinham carteira assinada.

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