Malu Jimenez, filósofa e autora dos livros

Malu Jimenez, filósofa e autora dos livros "Lute Como Uma Gorda" e "Lute Como Uma Gordinha"

crédito: Jair.Amaral/EM/D.A Press

“Tenho este corpo e mereço ter respeito, tratamento digno e acesso aos espaços e direitos como qualquer outro corpo”, afirma Rafaela Lima, de 51 anos, que sofre com as sequelas de uma cirurgia bariátrica – e de outras intervenções devido a complicações. Ela diz que sempre foi saudável e nunca precisou do procedimento, mas que acabou cedendo por conta da pressão da família e da gordofobia que estaria internalizada por médicos que a atenderam ao longo da vida.

“Vivi uma coisa que algumas pesquisadoras têm chamado de Síndrome do Corpo Provisório, que é como se você sempre devesse um corpo ‘certo’ para a sociedade, então sempre está com a vida em stand-by por ter um corpo que está errado, que é doente e inadequado”, conta Rafaela, que é jornalista e presidente da Agência de Iniciativas Cidadãs (AIC).

Rafaela se encaixa no que alguns ativistas chamam de patologização de corpos gordos, muitas vezes reforçada pela medicina e por outras áreas da saúde. No Brasil, 56,8% das pessoas apresentam excesso de peso, de acordo com o Covitel 2023 (Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas Não Transmissíveis em Tempos de Pandemia).

 

Formação gordofóbica


Para especialistas, a patologização dos corpos gordos é constituída e estruturada na própria formação dos profissionais da saúde. De acordo com a nutricionista Mab Boaventura, os professores da área da saúde já introduzem a pauta das corporalidades gordas associada ao emagrecimento, o que desumaniza o tratamento e afasta os pacientes do cuidado em saúde. A questão ´é complexa e, não à toa, mudar a forma como, é abordada na sociedade é um dos objetivos do Dia Mundial da Obesidade.

“Ele (professor) entra como um detentor do saber que vai dizer para os estudantes o que um paciente deve fazer para ‘voltar’ a ter um corpo que se encaixe no que se entende como um corpo saudável. A patologização compulsória do corpo gordo é um problema estrutural de como a gente enxerga a saúde e do que a gente entende como saudável, achando que existe um corpo ‘normal’ e que todo corpo que desvia dessa norma precisa ser curado”, defende a nutricionista.

“Sob essa ótica, todo corpo que precisa ser corrigido é um corpo que precisa ser emagrecido, e isso vai tirando as pessoas do cenário de cuidado, porque não se enxerga uma pessoa, mas sim um corpo errado, equivocado. Consequentemente, um corpo gordo é visto como um corpo feio, um corpo descontrolado, um corpo menos eficiente”, complementa.

“Precisamos rever a construção de associar que todo corpo gordo é um corpo doente. Primeiro, porque ele pode ser ou não doente, e se ele for doente, precisa ser tratado com respeito e dignidade como qualquer outro corpo. O diagnóstico não pode chegar antes de uma investigação médica”, diz Rafaela Lima.

Para Danielle Moraes, médica e educadora da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), a área da saúde está acostumada a desumanizar pessoas gordas. A luta política é essencial para mudar o cenário.

“Foi o discurso médico que inventou a obesidade enquanto uma entidade patológica. O corpo gordo, na prática da clínica médica, perdeu a condição de sujeito e virou um objeto cujo foco é a perda de peso: é um corpo silenciado, que não terá uma anamnese feita, porque é entendido que a doença é o próprio corpo da pessoa. E ainda que seja fundamental pautar a gordofobia na educação médica, também é necessária uma luta política por um processo de trabalho humanizado”, explica.

“Principalmente na rede privada, a lógica é o lucro, então não dá tempo para conhecer o paciente: saber como está dormindo; se tem emprego; qual a relação com a comida; a qual tipo de alimento tem acesso; como é a família; se tem rede de apoio. Por isso, é importante travarmos uma luta política por um tempo de produção de cuidado junto com aquela pessoa, e não é mercantilizando [a relação] que conseguiremos isso, mas sim com um trabalho que se abra para o que a pessoa precisa”, acrescenta.

 

Consultas médicas que traumatizam


A filósofa e ativista Malu Jimenez, de 52 anos, autora dos livros “Lute Como Uma Gorda” e “Lute Como Uma Gordinha” dá alguns exemplos de como a medicina, além de não tratar os problemas de pessoas gordas pela raiz, às vezes ainda faz questão de traumatizar pacientes que podem vir a evitar consultas clínicas no futuro.

“Desde muito cedo, eu percebia que o tratamento do médico era diferente comigo [se comparado ao da] minha irmã magra. Eu sempre estava relacionada a um corpo doente, enquanto ela não. Até hoje, quando chego num consultório, o médico olha para mim e já associa o meu tamanho a uma pessoa doente, então não há investigação médica da minha queixa”, relata.

Malu também conta que durante uma palestra uma mulher foi até ela para contar que sua irmã foi xingada por uma médica ginecologista porque a maca quebrou durante o atendimento.

“Ela ficou tão traumatizada que levou seis anos para voltar ao médico. Um dia, começou a sentir dores horríveis e, quando resolveu ir, descobriu um câncer avançado no útero e faleceu. No laudo dessa menina aparece que ela morreu por ser obesa, mas a realidade é que ela morreu de gordofobia, porque lhe foi negado um tratamento e uma investigação de prevenção por ser gorda”, afirma.

“Este ano, fui a uma dermatologista porque estava com um problema na unha, mas antes de olhar meu problema ela falou que eu tinha que emagrecer. Outro caso foi quando eu tive hérnia de disco. Os médicos trataram a minha dor, que era na perna, como algo relacionado ao peso. Demorou três anos para que um outro profissional pedisse uma ressonância da minha coluna”, conta a jornalista.

 

Projeto de lei


Em março deste ano, foi apresentado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais um projeto de lei que visa a acessibilidade de pessoas gordas. O Projeto de Lei 352/2023, apresentado pela deputada Andréia de Jesus (PT) no Dia da Mulher, trata da implantação de medidas de proteção e de inclusão da pessoa gorda nos espaços públicos e privados do Estado e institui o Dia Estadual do Combate à Gordofobia.

 

Conhecimento x estigma


Amanhã, será celebrado o Dia Mundial da Obesidade, instituído em 2020 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A data tem como finalidade disseminar conhecimento, conscientizar a população sobre os riscos associados e combater o estigma social que cerca o quadro. Segundo a OMS, a obesidade é o alto percentual de gordura corporal, que pode ser porta de entrada para diversos problemas de saúde, como diabetes do tipo 2, hipertensão e doenças cardiovasculares. Ainda segundo a instituição, a obesidade é um dos principais problemas de saúde pública do mundo. De acordo com Atlas Mundial divulgado nesta semana, 35% da população brasileira de 5 a 19 anos tinha excesso de peso em 2020. A previsão é que o número chegue a 50% em 2035.