Juiz de Fora – As teclas do piano imaginário desenhadas no banco de madeira, tocadas pelo menino, contrastam com as apresentações de Moisés Mattos, de 36 anos, em importantes salas de concerto da Europa. Autodidata, o pianista de Juiz de Fora, na Zona da Mata, fez recitais na Hungria, Itália, França e Inglaterra, entre outros países. Para chegar lá, o garoto pobre contou com a solidariedade de professores que ajudaram a lapidar seu talento, mas enfrentou a pobreza e o preconceito.

Na Alemanha, o mineiro se formou na faculdade de música da Universidade de Bremen. Voltou ao Brasil para se apresentar pela primeira vez no Cine-Theatro Central, em sua cidade natal, quando as câmeras foram ligadas para as gravações do documentário “3 atos de Moisés”. Dirigido por Eduardo Boccaletti, o filme estreou nas salas de cinema na última quinta-feira (4/12). Em BH, está em cartaz no UNA Cine Belas Artes.

Com o filho longe de casa, os pais de Moisés, Paulo Roberto, de 65 anos, e Maria de Fátima, de 75, ficaram sob os cuidados de uma prima do pianista em Juiz de Fora. Iletrado, sem acesso formal à educação, o casal mora numa casa humilde no Bairro São Pedro.

Paulo Roberto e Maria de Fátima, pais de Moisés, moram em casa humilde do Bairro São Pedro, em Juiz de Fora

Bruno Luís Barros/EM/D.A Press

“Não entendo muito, mas a música era tão linda. Não sei explicar. É como se ela tivesse entrado no meu coração. Eu chorei. Fiquei muito emocionada”, diz Maria de Fátima, ao comentar apresentação do filho no Cine-Theatro de Juiz de Fora.

Na evangélica Congregação Cristã no Brasil, perto da casa dos pais, Moisés teve o primeiro flerte com o violino. “Comecei aos 8 anos. Aos 12, já ensinava na igreja para outras pessoas. Meu sonho, mesmo, era tocar o órgão da igreja, o que sempre foi proibido para os homens”, lembrou.

Certa vez, na casa de uma prima, ele viu na TV o concerto de Vladimir Horowitz, pianista judeu-ucraniano naturalizado norte-americano. “As pessoas na plateia choravam. Aquilo mexeu tanto comigo. A partir daquele dia, decidi que queria tocar piano para despertar as emoções das pessoas.”

O 'clandestino'

O primeiro contato de Moisés com o piano ocorreu aos 13 anos, depois de se tornar um “clandestino” nas dependências do Conservatório Estadual de Música Haidée França Americano, em Juiz de Fora.

“Uma das amigas da minha mãe, que frequentava a igreja, fazia aulas de violino lá e me convidou para uma visita. Ela me apresentou a um aluno do conservatório, que acabou se tornando um dos meus melhores amigos. Ele me deu a oportunidade de tocar um piano de verdade pela primeira vez. Inclusive, compartilhou comigo a chave da sala para que eu pudesse treinar. Os porteiros sabiam e me deixavam entrar, mas não era sempre que conseguia fazer isso”, diz Moisés.

No conservatório, o garoto conheceu outros estudantes. Um deles, ao vê-lo tocar, recomendou que procurasse o professor André Pires na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Com apenas três meses de prática, foi assistir a uma aula no Instituto de Artes. Perguntou a Pires, hoje aposentado, se poderia lhe mostrar o que sabia. “Fiz a apresentação, mas cometi alguns erros”, relembra.

A reportagem do Estado de Minas foi à casa do professor, no Bairro Bairu, local frequentado por Moisés dos 14 aos 17 anos, antes de ir para a Alemanha. Para ter aulas com Pires, o adolescente andava cerca de sete quilômetros por quase duas horas, pois não tinha dinheiro para passagens de ônibus.

“No dia em que o conheci, aos 13 anos, ele pediu para assistir às aulas na universidade. Deixei, pois a instituição é pública. Moisés não teria o reconhecimento por meio de diploma, mas absorveria conhecimento. Ele frequentou dois semestres, quando ministrei as disciplinas de musicalização básica e, depois, linguagem musical. A dedicação era tanta que ele tirava xerox das partituras no conservatório e treinava sozinho em casa no teclado desenhado num banco de madeira”, conta Pires, doutor em música pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

“Quais são as outras disciplinas que você leciona na faculdade?”, perguntou Moisés, que ficou desapontado com a resposta. “Não tem outras”, disse o professor. “Decidi oferecer a ele uma bolsa de estudos de três meses com aulas na minha casa. Era um teste para ver se tinha disciplina, porque eu tinha certeza do que havia ali”, destaca Pires.

Ao lado do piano, Moisés Mattos agradece aplausos do público após concerto em Hamburgo, na Alemanha

Kay Koschel/Elbphilharmonie

Desde então, foram mais três anos de estudos e longas caminhadas a pé. “Moisés começou a ter muita dificuldade para entrar no conservatório. Achei absurdo uma escola pública estadual se recusar a oferecer um piano para ele treinar. Conversei com a diretora, que repassou minha queixa ao colegiado. Por fim, acabaram permitindo que ele praticasse lá”, conta o professor.

Com a venda de rifas, foi possível obter dinheiro suficiente para comprar o primeiro piano de Moisés, levado para a casa onde ele morava com os pais.

“O André foi a primeira pessoa que realmente acreditou em mim. Eu me senti acolhido na casa dele. Sofri muito preconceito na família e dentro da igreja por ser gay. Na congregação, falavam que era coisa do demônio. É difícil crescer ouvindo isso. Na escola, sempre apanhei muito. Passei por episódios de racismo. Tudo isso sugou demais a minha energia. Na casa do André, minha sexualidade nunca foi pauta, nunca importou. Nossas conversas nunca eram somente sobre música. A nossa relação virou uma linda amizade”, diz o pianista.

Aos 17 anos, Moisés Mattos encerrou as aulas com o mentor André Pires. Viajou para a Alemanha aos 18, fixando residência em Hamburgo. “No início, quando cheguei, foi tudo muito difícil. Dava aulas particulares, andava por todo lado oferecendo meus serviços, colava cartazes nas ruas. Passei a acompanhar no piano apresentações de cantores e dançarinos, além de atuar como solista em muitas produções”, conta.


Mattos fez provas em cinco instituições alemãs e passou em todas. Optou pela faculdade de música em Bremen, fez bacharelado e concluiu o mestrado em 2021. Voltou ao Brasil em 2019, para filmar '3 atos de Moisés'. O diretor Eduardo Boccaletti se encantou com a história do garoto de Juiz de Fora que realizou o sonho de ser pianista, apesar das imensas dificuldades que enfrentou.

“3 ATOS DE MOISÉS”


Brasil, 2025, 73 min. Documentário de Eduardo Boccaletti sobre o pianista Moisés Mattos. Em cartaz na Sala 1 do UNA Cine Belas Artes, às 14h. 

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