Will coloca à mostra sua "pedagogia do axé" em exposição em BH
A prática de ouvir e aprender com os outros guia o artista, afrofuturista e cosmopolita, cuja individual "Após a chegada" fica em cartaz até 27/4, na Casa Fiat
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Siga noVocê já ouviu falar do afrofuturismo? É uma cosmopercepção e uma cosmopolítica, um modo de conectar passado, presente e futuro. O artista Will se define como afrofuturista, e sua exposição “Após a chegada”, curada por ele e em cartaz na Casa Fiat de Cultura, oferece uma imersão nesse universo. Reflexões afrofuturistas também podem ser encontradas na exposição “Atlântico”, curada por Alinne Damasceno, na Galeria Hogar.
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“Após a chegada” adota uma perspectiva curatorial circular, fundamentada na prática de pedir licença aos mais velhos, saudá-los e respeitá-los pelo tempo em que estão presentes na roda das conversas. Dentro dessa "gira", cumprimentam-se figuras como o Rei Exu e Cosme e Damião, acompanhados de suas representações artísticas, como as capulanas africanas.
A reverência a Mateus Aleluia, uma ancestralidade viva, nos conduz logo em seguida a um momento de defumação com os mestres do Catimbó.
A Jurema, árvore sagrada do sertão, é lida pelos profetas das chuvas, que, ao observá-la, nos ensinam sobre os ciclos da natureza. A árvore hiberna durante a estiagem e, ao anunciar a chegada da chuva, é uma das primeiras a brotar suas folhas verdes, preparando a paisagem para o período invernoso.
Qual é o segredo da Jurema? Sua iconografia religiosa e o entendimento dessa árvore no sertão formam a base do pensamento de Will sobre a vida nos territórios afrofuturistas, onde as pirâmides de Kemet (o antigo Egito) se transformam em casas, navios, pontas de lança, montanhas, desertos, quilombos e outros espaços que atravessam geografias humanas.
Pensamento cultural
Antônio Bandeira e Will são artistas que se aproximam na produção de um pensamento cultural, mesmo que tenham vivenciado tempos históricos distintos. São intelectuais mediadores que, por meio da arte, transmitem experiências que são também filosofia, história e devir.
Passado, presente e futuro se articulam em movimento, promovendo reflexões sobre as espacialidades e temporalidades dos povos africanos, que, ao chegarem nas terras de Pindorama, foram acolhidos pelos povos indígenas. Juntos, construíram ações de ajuda mútua e resistência contra as violências da colonização e da branquitude nas vilas, aldeias e quilombos.
Assim como Antônio Bandeira, Will se interessa pelas cidades, suas paisagens, festas e o sol. Em um diálogo que atravessa e desafia a noção ocidental de tempo — onde “Exu matou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje” — Will nos ensina sobre um Bandeira afrofuturista, enquanto Bandeira também nos ensina sobre um Will cosmopolita.
A partir desse intercâmbio, posso afirmar que o que aprendi ao estudar Antônio Bandeira me oferece as lentes para ler, sentir, interpretar e me emocionar com a pesquisa artística de Will.
Will é um artista afrofuturista e cosmopolita que constrói seu pensamento artístico por meio de viagens aos sertões, quilombos e aldeias indígenas, além de explorar os diferentes bairros de Belo Horizonte, sua cidade natal.
Obra do artista mineiro Will, integrante da mostra "Após a chegada"
Ele é um artista da escuta, atento às histórias transmitidas pela oralidade, pela voz que compartilha as vivências do povo sertanejo, as histórias contadas pelos griôs, como nos lembra o próprio Will.
Sua prática se fundamenta na forma de ouvir e aprender com os outros, o que o artista nomeia de uma pedagogia do axé, uma arte da vivência, afroepistemologia, numa perspectiva afrocivilizatória.
Além disso, Will é um profundo leitor da história da África e um estudioso do valor cultural, histórico e simbólico das pirâmides do antigo Egito. Ele transporta essas pirâmides para o campo da arte como uma força motriz revolucionária, conforme o pensamento de Jean-Luc Aka-Evy, estudioso das origens negras da modernidade. Assim, afirmo que a pirâmide, nas pinturas de Will, simboliza a presença africana no mundo contemporâneo e nas artes.
De acordo com Henrique Cunha Junior, Maat trata-se de uma sabedoria elaborada com o coração, uma ética e uma estética que equilibram razão e emoção, e está conectada ao deus Rá, deus do Sol, responsável pelos movimentos de nascimento, morte e renovação.
Assim, a pirâmide, na pesquisa artística de Will, poderia também simbolizar a sobrevivência da noção de Maat, conceito central na filosofia egípcia, que circula por todo o continente africano: ordem cósmica, justiça, equidade e harmonia social.
As noções de Maat e Tekó Porã, do povo Guarani, compartilham filosofias do "bem viver". Ao aproximar as pirâmides do Egito das árvores da Jurema, situadas em territórios de cultura afroindígena, no campo e na cidade, Will nos convida a pensar o afrofuturismo como uma filosofia do bem viver.
“APÓS A CHEGADA”
Exposição de Will. Em cartaz na Piccola Galleria da Casa Fiat (Praça da Liberdade, 10, Funcionários). Visitação de terça a sexta, das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h. Até 27 de abril.
*Doutora em História da Arte pela Universidade de Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professora de Teoria, Crítica e História da Arte na Escola de Belas Artes da UFMG.