Conceição Evaristo em seu discurso de posse, ontem, na AML:

Conceição Evaristo em seu discurso de posse, ontem, na AML: "Quero marcar nossa presença. Talvez com novas maneiras de pensar e de entender a literatura"

crédito: Marcos Vieira/EM/D.A. PRESS

A data escolhida para a cerimônia de posse de Conceição Evaristo na Academia Mineira de Letras (AML) não foi ao acaso: 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Trata-se de uma espécie de reconhecimento da própria instituição de seu passado masculino e aristocrata. Dos 201 acadêmicos que já passaram pela AML desde sua fundação, em 1909, afinal, somente 10 foram mulheres – e até então, nenhuma negra.


 


“Conceição vem para iniciar um novo ciclo”, afirmou o presidente da AML, Jacyntho Lins Brandão, antes da cerimônia. “Ela é 201ª acadêmica, a 10ª mulher e a primeira negra.”


O caráter representativo da escolha de Conceição é inegável. O que determinou sua eleição, contudo, foi a trajetória literária traçada pela mineira.

 


Nascida em uma família grande e pobre, Conceição começou a trabalhar cedo. Aos 8 anos, era empregada doméstica. Concluiu o ensino escolar aos 25, ingressou no curso de letras e na sequência fez mestrado na área. Foi nessa época que estreou na literatura, publicando contos na série Cadernos Negros, editado pelo grupo Quilombhoje.


Em 2003, lançou “Ponciá Vicêncio”, seu primeiro romance. Com o sucesso da publicação, escreveu “Becos da memória” (2006), “Poemas da recordação – E outros movimentos” (2008), “Insubmissas lágrimas de mulheres” (2011), “Olhos d’água” (2014), “História de leves enganos e parecenças” (2016) e “Canção para ninar menino grande” (2018).


CRÍTICAS VISCERAIS

 

Por suas histórias recheadas de críticas sociais viscerais, ela venceu importantes prêmios, como Jabuti (2015), Família da Liberdade (2007) e Ori (2007), tornando-se leitura obrigatória para quem pretende entender o protagonismo feminino, a discriminação racial e de gênero.


Na área acadêmica, desenvolveu o conceito de "escrevivência", quando fazia mestrado. Resultado de jogo entre as palavras “escrever” e “viver”, o conceito parte de um histórico fundamentado na fala de mulheres negras escravizadas que tinham de contar suas histórias para ninar os filhos dos senhores da casa-grande.


Na AML, ela ocupará a cadeira de número 40, que, segundo Jacyntho Lins Brandão, é a cadeira que se destaca por ser a única que pratica equidade de gênero. Por lá, já passaram Pinto de Moura, Affonso Penna Júnior e, por último, Maria José de Queiroz.


“É impossível pensar numa casa que representa a literatura sem pensar numa casa que não representa a diversidade. A cultura brasileira é uma cultura diversa. O próprio estado de Minas Gerais demonstra essa diversidade. Por isso, devemos pensar a cultura como diversidade. E acho que a Academia Mineira de Letras dá um exemplo muito grande também com a eleição do (Ailton) Krenak, no ano passado”, afirmou Conceição em entrevista coletiva antes da cerimônia.


IMORTALIDADE COMPARTILHADA

 

Em seu discurso de abertura, Jacyntho lembrou o título de imortal que agora Conceição recebe ao ocupar a cadeira 40 na AML. “É curioso que chamamos os acadêmicos de imortais. Mas é uma imortalidade compartilhada, porque a cada vez que um ‘imortal’ morre ele deixa seu lugar para um novo imortal”, afirmou.


Já a vice-presidente da AML, Maria Antonieta Antunes Cunha, ao apresentar a nova acadêmica, traçou um paralelo das histórias de Conceição e de suas personagens com a canção “Maria Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant. E finalizou: “Estou certa de que muitíssimos brasileiros escolheriam você, Conceição, para nos representar. E, nesta casa, você, certamente, representa a nós, mulheres”.


Por fim, Conceição subiu ao púlpito para fazer seu discurso. “O chão mineiro de palavras mais se expande se suas sementes são diversificadas em suas origens”, começou a escritora.


Em cerca de 35 minutos, ela lembrou do legado de sua antecessora, Maria José de Queiroz, destacou a importância da diversidade – lembrando da eleição de Krenak, do qual afirmou que “uma cumplicidade, não programada, reina entre nós” – e, por fim, lembrou com contundência que a diversidade não pode ser vista como enfeite.


SEM ENFEITES

 

“Não quero ser só representatividade. Eu quero marcar nossa presença. Talvez com novas maneiras de pensar e de entender a literatura. Pode até parecer petulância minha, mas nós não somos enfeites”, disse.


“Outro dia estava ouvindo alguém se referir a esta casa como ‘A casa de Henriqueta Lisboa’. Como é bom poder entrar na casa de Henriqueta Lisboa sem ser na condição de subalternizada”, concluiu Conceição, lembrando que seus familiares trabalharam para familiares da poetisa.