A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1946  -  (crédito: Divulgação/Aline Macedo)

A escritora Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte, no ano de 1946

crédito: Divulgação/Aline Macedo

Conceição Evaristo é uma das escritoras mais cultuadas da literatura brasileira na atualidade. O reconhecimento veio muito depois de um longo caminho percorrido no mercado literário, que começou em 1990, com publicações de contos e poemas na série Cadernos Negros. De lá para cá, a mineira tornou-se um dos símbolos da luta pelo reconhecimento dos conhecimentos produzidos pela população negra.

Aos 77 anos, completados em 29 de novembro, Maria da Conceição Evaristo de Britto preserva a curiosidade e a vontade de viver que tinha a menina nascida e criada na favela do Pindura Saia, que foi removida para obras de urbanização, em Belo Horizonte. No romance Becos da Memória (2017), a escritora conta as histórias de um lugar muito parecido, permeado pelas agruras de um povo que enfrenta o duro desafio de sobreviver em meio à pobreza e ao abandono. "As pessoas falam que a vida começa aos 40. Para mim, foi aos 70", reflete. Ao Correio, Conceição falou da demora em ter sua obra reconhecida e de como o racismo dificulta o acesso e a afirmação de pessoas negras em diversos campos do saber, principalmente na literatura.

Livros como Olhos d'água (2014), pelo qual ganhou o Prêmio Jabuti, Ponciá Vivêncio (2003) e Canção para ninar menino grande (2018) também compõem sua aclamada obra. O mais recente lançamento é Macabéa: flor de mulungu, um convite da Oficina Raquel para reescrever personagens presentes no trabalho de Clarice Lispector.

"Escrevivência", termo cunhado por Conceição, extrapola a experiência individual do sujeito. Ela é porta-voz das dores de toda uma coletividade e uma força contra o epistemicídio, termo relacionado à morte da construção do conhecimento, causada pela imposição de uma cultura dominante. "Hoje, pessoas brancas também estão discutindo e propondo ações contra o racismo. Não fazem mais do que a obrigação", avisa. A escritora é doutora em letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e não admite que sua história reforce ou seja usada como exemplo para o discurso da meritocracia.

Em Becos da memória, a senhora fala muito em pôr o dedo na ferida, não apenas na do povo oprimido, mas na daqueles que oprimem também. Como é o processo de criação literária imergindo nessa dor?


Eu acho que esse processo de criação literária colocando o dedo na ferida se realiza através de uma literatura que não é só de entretenimento. A escrevivência não é para adormecer a casa grande, mas sim para acordá-la dos seus sonhos injustos. Eu diria até que eu tenho um projeto literário que ficcionaliza a vida a partir de uma experiência da própria vida. Trazer essa realidade é pôr o dedo na ferida de quem percebe, de quem vive. A literatura brasileira traz histórias de vida, traz os povos, traz as mulheres e as mulheres negras. É uma literatura que tem compromisso com a realidade. Nós vamos ver várias obras interessantíssimas que tratam da realidade. Mas acho que o meu texto põe o dedo na ferida por trazer a realidade que a autoria vive de dentro. Ou vive a partir da sua experiência pessoal, ou a partir do seu lugar de pertença, do grupo social ao qual ela pertence, da condição étnica. É uma literatura que vem de dentro.

A personagem Maria Nova é porta-voz das dores de todas aquelas pessoas que a cercam. Isso casa muito com escrevivência, palavra cujo significado não se encerra apenas na aglutinação dos termos "escrever" e "vivência".


É um livro em que eu realizo, sem sombra de dúvidas, esse experimento da escrevivência. E Maria Nova é uma personagem que, não há como negar, é muito próxima de mim. Eu brinco muito que ela me copia. Ela se conclui com a minha experiência enquanto jovem, mas não é o meu retrato completo. E tem ali um dado que marca a escrevivência porque não se trata do sujeito individualizado. Trata-se de um sujeito coletivo. O Becos da Memória não se esgota em Maria Nova, é um livro que traz uma coletividade que está ali, que dialoga com a personagem. Escrevivência é isso: não é uma história que se reduz em uma vivência individualizada. É pensar também em uma vivência coletiva.

Maria Nova é uma menina muito curiosa, que gosta de ouvir histórias. Conceição também?

Aos 77 anos, ainda tenho muita curiosidade, que é o que dá para mim um dinamismo, uma potência de vida. Eu tenho uma curiosidade muito grande com relação à vida. Ainda quero experimentar muitas coisas, andar em muitos lugares, falar com muitas pessoas, ir além do que eu já fui. Ainda quero escrever muito.

A senhora falou recentemente que passou a se sentir viva após os 70 anos.

Foi após os 70 que eu tive mais condições de vida. A minha literatura se difundiu mais, assim como o meu nome. Após os 70, tive muitas oportunidades que surgiram no campo da literatura. As pessoas falam que a vida começa aos 40, mas, para mim, foi aos 70. Claro que há um exagero nisso aí. Mas eu tenho ficado muito feliz com a minha fase de idade, tem sido muito frutífera. Aos 70 anos, eu não sequei. Pelo contrário: cada vez mais eu me potencializo.

Hoje, a senhora é uma das escritoras mais cultuadas do país. Como lida com a demora em ser reconhecida?


Tenho dificuldade nenhuma em afirmar que isso passa pelas relações raciais do Brasil. E não é só na literatura. Para se firmar, no Brasil, em qualquer área do conhecimento, mesmo aqueles mais abertos, a pessoa negra vai ter mais dificuldades. Por exemplo, no campo da música há determinados nichos que a pessoa negra custa mais em acessar ou em ser reconhecida. Espera-se que ela seja sambista, mas não é esperado que ela seja um cantor lírico. Na dança, espera-se dela que saiba sambar, não no balé clássico. Então, há a dificuldade em acreditar em determinadas capacidades da pessoa negra. Na literatura, isso fica muito perceptível, como se não tivéssemos a capacidade de apresentar nossas epistemes, nossas sabedorias. Acreditar que uma pessoa negra tem capacidade de fala já é complicado. É o preconceito que Carolina Maria de Jesus sofreu e ainda sofre. A crítica literária entende muito bem a dicção de Guimarães Rosa e a de Clarice Lispector, mas não aceita a de Carolina. Se eu fosse uma mulher branca, eu teria uma possibilidade muito maior pelo campo literário.

Dói perceber isso?

Não é uma dor que paralisa. Sem sombra de dúvidas, eu me coloco numa situação de gratidão ao reconhecimento que tenho hoje, mas não deixo de fazer essa crítica, porque essa crítica vale até para esse lugar de legitimação da literatura, da crítica literária, das pesquisas acadêmicas e da política de distribuição dos livros. É uma crítica necessária para que esse olhar para a produção negra seja mais amplo, para contemplar outros escritores negros.

A senhora se considera uma das forças pela interrupção do epistemicídio na produção intelectual brasileira?

Sim. Acho que venho trazendo na minha própria literatura outras percepções de mundo, outras compreensões da vida e críticas. É pensar o Brasil e a vida segundo a nossa perspectiva negra, que pode dialogar, inclusive, com a perspectiva que já está aí. Considero que o meu trabalho tem essa importância de criticar o epistemicídio e o memoricídio, que é o apagamento da memória que nós estamos construindo há séculos e que marca muito bem a nacionalidade brasileira.

Nunca discutimos tanto sobre raça no Brasil. Como a senhora enxerga esse amadurecimento em relação a um assunto que ignoramos tanto ao longo da história?

Para acreditar que o Brasil é uma democracia racial era preciso que a pessoa fosse muito alienada ou muito cínica. Acho que a sociedade brasileira está perdendo o seu cinismo e está ganhando a sua coragem de pôr o dedo na ferida, de não varrer o racismo para debaixo do tapete. Hoje, pessoas brancas também estão discutindo e propondo ações contra o racismo. Não fazem mais do que a obrigação. A busca pela solução do racismo brasileiro não é uma tarefa somente de nós negros, até porque não fomos nós que criamos o racismo. As pessoas brancas têm uma responsabilidade muito grande no modo das relações raciais brasileiras. São elas que estão no lugar do poder, mas não é só no poder financeiro, mas também cultural, definindo, nas academias, quem ganha ou não bolsa, são quem detêm as editoras e o poder de comunicação. Cada vez mais as pessoas têm que entender qual é o papel delas e quais são os seus privilégios. As discussões entre nós, negros, já está bem sedimentada. Acho que resta agora os brancos discutirem quais são as responsabilidades deles. Lembro de uma frase de Machado de Assis proferida após a abolição: "Emancipados os pretos, resta emancipar os brancos".

Como foi sair de uma origem pobre e chegar a um lugar de admiração?

Passou muito, prioritariamente, pela educação. Eu acho que a educação é um lugar que pode promover a mobilidade social, mas continuo afirmando: não para todas as pessoas. No entanto, o caminho mais propício para quem não vem de família que acumulou riquezas, para quem não tem herança, para quem não tem um futuro garantido, é a educação. Por isso, a educação tem que ter um projeto libertador, democrático, que esteja ao alcance de todas as pessoas, principalmente a educação pública. É uma mobilidade que ainda se dá para poucas pessoas.

As cotas raciais, dentro do seu limite, na sua visão, compõem um movimento que está começando a reverter essa situação?

As ações afirmativas mudaram a cara das universidades brasileiras. Mas ainda há alguns cursos em que as ações afirmativas precisam atingir mais esse público, como medicina, engenharia, arquitetura e artes plásticas. Para o público indígena, a defasagem é ainda maior. Ao colocarem mais pessoas afro-brasileiras nas universidades, indiretamente elas mudam os currículos, porque outros extratos da sociedade apresentam novas formas de saber, novas bibliografias, mas ainda é preciso de mais mudanças.