

"Ainda estou aqui" mostra os horrores da ditadura como nenhum livro ensinou
Qual a magia do filme que ensina aos que não se lembram e aos que não têm o que lembrar, o que é um regime de medo, tortura e morte?
Mais lidas
compartilhe
SIGA NO

“Poxa, não deu para eu ver o filme com a família” disse Daniel, meu neto de 15 anos. Então fomos todos rever “Ainda estou aqui” para acompanhá-lo. Ele achou o filme próprio para hoje. Ao fim, ele citava frases que poderiam ser ditas atualmente e admitiu que quer rever para pensar nelas. Ele está certo, “Ainda estou aqui” ensina os horrores da ditadura ao Brasil de hoje como nenhum outro filme ou livro.
-
09/12/2024 - 04:00 A governabilidade no presidencialismo de coalizão -
23/12/2024 - 04:00 Novo cenário para o Brasil -
06/01/2025 - 10:08 O Brasil em 2025
Um mártir, uma heroína-mãe, uma família feliz brutalizada pela ditadura, na memória bem contada por Marcelo Rubens Paiva, adaptada para a tela em um filme limpo, fiel e bem dirigido por Walter Salles. É a história de Eunice Paiva e do sequestro e da morte de Rubens Paiva. Fernanda Torres é Eunice. Uma interpretação contida e, por isso, mais eloquente, sobre a dor profunda de uma mulher e mãe. Nas duas vezes que assisti havia mistura de gerações, quem viveu e quem mal ouviu falar da ditadura, e houve lágrimas e palmas.
O filme conversa com os jovens que nem sequer eram nascidos naquela época tormentosa. Eu tinha a idade de Daniel, quando vi os tanques do golpe descerem a W-3 em Brasília, no dia 1º de abril, e a idade da irmã dele, Mariana, 18 para 19, quando foi editado o AI-5. Eles ouviram da ditadura em casa com os pais e avós, mas o filme lhes mostrou mais.
Qual a magia do filme que ensina aos que não se lembram e aos que não têm o que lembrar, o que é um regime de medo, tortura e morte? Marcelo foi feliz em escrever sobre Eunice e olhar a ditadura da perspectiva dela no ambiente familiar. O filme torna essa narrativa ainda mais intimista. Mostra um ambiente alegre e vivo do tempo de normalidade invadido por agentes da ditadura e a vida familiar ficar tensa, infeliz e expectante. O sorriso, antes alegre, passa a ser afirmação política de resistência de uma família ferida, com medo da perda intuída e da repressão.
Walter entendeu a força desse olhar a ditadura a partir do centro da família amputada e da contida atuação de Fernanda Torres. A mudança de ambiente produzida pela ditadura está na saída de cena da simpatia, alegria e espontaneidade de Rubens Paiva, na esplêndida atuação de Selton Mello. Ela dá lugar à triste resistência de sua família. A leveza maternal de Eunice/Fernanda antes da invasão de sua casa contrasta com a dor comedida e o severo cuidado maternal, depois. A vida familiar deles nos é tão próxima.
As cenas fora da casa dos Paiva são laterais. A rua é vista pela câmera 8mm de Vera, a filha mais velha. A mágica é a empatia. A atuação de Fernanda Torres dá vigor e emoção ao filme sem os excessos interpretativos usuais nos filmes atuais. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro, que interpretam diferentes momentos de Eunice, usam a expressão facial e corporal com uma eloquência que dispensa palavras e gestos a mais. A dor e a indignação comedidas têm muito mais efeito do que prantos abertos e explosões de raiva.
A visão familiar do mal o faz mais real e nos leva à emocionada identificação com a família Paiva. Hannah Arendt dizia que ao se falar para o público muda tudo. Quando uma família fala ao público sobre sua dor particular, esta se universaliza, passa a ser de todos e leva as platéias às lágrimas. Por isso ela se torna nossa família. Os espectadores sentem a dor como sua porque ela se dá na intimidade do lar. Em uma sociedade digital em que domina o grito e o ódio, o não grito de Eunice/Fernanda Torres cria imediata empatia com o público. São as vítimas de poucas palavras que emocionam, Fernanda Montenegro/Eunice com Alzheimer calada e expressiva diante da TV.
O foco em Eunice, desde o sequestro de Rubens e sua morte, e a encenação de Fernanda mantém o espectador ciente todo o tempo da brutalidade do mal na ditadura e solidário com a mãe ferida que precisa cuidar dos filhos. A ambientação na casa familiar, até a mudança para São Paulo, evidencia dolorosamente a ausência de Rubens Paiva todo o tempo. A cena em que o jornalista Fritz Utzeri conta a Eunice que seu marido foi morto marca a mudança para São Paulo e para o ciclo público de Eunice, é quando ela sai, como diria Roberto DaMatta, da casa para a rua.
A frase mais dolorosa com a qual ela reage à temida notícia, para mim, é “você não se importa se eu não o acompanhar até a porta, né?”. Diz tudo o que ela sente. É a linguagem do filme situado na sala de estar de uma família como as nossas que cria a empatia e faz Daniel dizer que ele é para hoje. Fala principalmente com aqueles que não viveram a ditadura ou dela pouco sabiam. Agora todos sabem.
Siga nosso canal no WhatsApp e receba em primeira mão notícias relevantes para o seu dia