Mauro Cid relatou não se recordar para quem

Mauro Cid relatou não se recordar para quem

crédito: Evaristo Sá/AFP

Até o chamado “Mensalão”, que resultou de uma denúncia do ex-deputado Roberto Jefferson (PTB-RJ) de que haveria na Casa Civil da Presidência um esquema de compra de votos de votos na Câmara para apoiar o governo Lula, quase não se tinha precedentes de deputados federais e senadores condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Seus processos eram mantidos em sigilo de justiça; a maioria dos réus acabava absolvida por falta de provas, erros processuais ou se livrava de condenação por decurso de prazo.

Jefferson era acusado de participar de licitações fraudulentas nos Correios e sua denúncia originou uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) na qual deputados e senadores investigaram e puniram os próprios colegas, em 2006. Lula negou que soubesse do Mensalão. O próprio Roberto Jefferson o poupou das acusações. Enquanto seus homens fortes caiam, Lula conseguiu se reeleger, em 2006.

Os indiciados pela CPI passaram a ser investigados pelo pelo Ministério Público federal (CPI), que ganhou protagonismo político e ares de de “Quarto Poder”. Em abril de 2006, a Procuradoria Geral da República apresentou ao Supremo Tribunal Federal a denúncia contra 40 pessoas acusadas de envolvimento no Mensalão. A denúncia foi aceita. O STF abriu processo criminal contra os acusados em agosto de 2007. Em julho de 2011, o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, pediu a condenação de 37 dos 40 denunciados.

Em 2 de agosto de 2012, os 11 ministros do STF começaram a julgar os réus no processo do Mensalão. O ministro Joaquim Barbosa, que viria a assumir a presidência da Corte, foi o relator; e Ricardo Lewandowski, revisor. Durante quatro meses e meio, houve 53 sessões, com debates acalorados entre os juízes e as defesas. No dia 17 de dezembro, 25 denunciados foram considerados culpados.

O STF começou a analisar os recursos apresentados por todos eles em agosto de 2015. A conclusão do julgamento só se deu em março de 2014, com a condenação de 24 pessoas. Alguns foram absolvidos de algumas acusações e tiveram pena reduzida. Nos cinco anos seguintes, todos, à exceção do publicitário Marcos Valério, teriam perdão judicial.

A partir do “Mensalão”, pipocaram dezenas de escândalos envolvendo políticos, devido a desvio de recursos públicos, superfaturamento de obras e serviços e uso generalizado de “caixa dois eleitoral”. Desde priscas eras, esse era o modelo de financiamento da política brasileira, mas havia se esgotado com a Constituição de 1988, embora resista até hoje.

O coroamento desse processo foi a Operação Lava-Jato, que embalou o tsunami eleitoral de 2018 e levou ao poder o ex-presidente Jair Bolsonaro, principal beneficiário dos movimentos que ergueram a bandeira da ética da política, à revelia de muitos dos seus porta-estandartes. Ao contrário da Lava Jato, marcada por arbitrariedades e barbeiragens jurídicas, o processo do “Mensalão” teve começo, meio e fim de acordo com os ritos do devido processo legal.

Assim como o caso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – enxertado no escândalo da Petrobras pelo então juiz federal Sérgio Moro, que não era o “juiz natural”, o que resultou na anulação da condenação –, o inquérito que apura a tentativa de golpe de 8 de janeiro, a cargo do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, tem singularidades que precisam bem fundamentadas para não afrontar o devido processo legal, sob risco de gerar nulidades futuras.

O sinal de alerta é o vazamento do áudio de conversas telefônicas do tenente-coronel Mauro CID, ex- ajudante de ordens do presidente Jair Bolsonaro, que fez delação premiada. Nelas, o militar relata ter sofrido pressão da Polícia Federal e classifica como “narrativa pronta” o inquérito que investiga a tentativa de golpe de Estado. As acusações de Cid nos áudios fizeram com que ele fosse chamado a prestar depoimento, na sexta-feira, no Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o termo da audiência, divulgado pelo ministro Moraes, na oitiva, o militar disse que a sua delação foi feita “de forma espontânea e voluntária.”

Cid relatou não se recordar para quem “falou as frases de desabafo, num momento ruim”. Questionado sobre quem são os “policiais” que queriam que ele falasse coisas que não sabia ou não teriam acontecido, respondeu que “ninguém o teria forçado” e confirmou “integralmente” o depoimento que deu à PF no último dia 11. Se o acordo for anulado, Cid perde todos os benefícios a que teria direito, como redução de pena, responder em liberdade e retirada de medidas cautelares.

As declarações feitas por ele durante as oitivas também podem ser desconsideradas. Continuariam válidas, porém, as provas apresentadas pelo militar, como troca de mensagens com outros investigados, documentos como a minuta golpista encontrada no seu computador e interceptação de ligações telefônicas. Ninguém sabe quem vazou os áudios, mas os principais beneficiados são o ex-presidente Jair Bolsonaro, os generais denunciados pelo ex-ajudante de ordens e outros integrantes da conspiração golpista.