Cristiano Sales, o Tiano, encontra sua camisa do Cruzeiro em meio à lama provocada pelo rompimento da barragem de Fundão -  (crédito: Álbum de família/divulgação)

Cristiano Sales, o Tiano, encontra sua camisa do Cruzeiro em meio à lama provocada pelo rompimento da barragem de Fundão

crédito: Álbum de família/divulgação

Em Bento Rodrigues, subdistrito da minha amada Mariana, moravam atleticanos. Poucos, assim como em qualquer lugar do interior de Minas Gerais. O Bento era um paraíso majoritariamente cruzeirense. Tinha vocação por ser afeito a tudo capaz de gerar alegria nas pessoas, como, por exemplo, o Cruzeiro.

Mas a partir das 16 horas de 5 de novembro de 2015 não restou nenhum atleticano em Bento Rodrigues. Tampouco, cruzeirenses. Naquele instante, o rompimento da barragem de Fundão, pertencente às mineradoras Samarco/Vale/BHP, engoliu tudo e todos pela frente com um mar de lama. Só no primeiro dia do crime, foram 19 pessoas mortas.

Antes da destruição, o povão azul e branco do Bento costumava assistir as pelejas do Cruzeiro no Bar da Sandra. A última, antes do crime da barragem, foi um chocho empate contra o Avaí. Depois dele, a dor pelas mortes, pela devastação do território e pela perda de todas as possibilidades de retorno fez com que o futebol ficasse em segundo plano.

A exceção foi a partida promovida em fevereiro de 2016, no Mineirão, entre os times de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, outra comunidade marianense arrasada pela lama da Samarco/Vale/BHP. Na zaga do time do Bento estava Cristiano Sales, o Tiano. Apesar do corpo franzino e da baixa estatura, ele ajudou a segurar a vitória por 2 a 1. Naquele domingo chuvoso, os atingidos não só disputaram uma partida, mas também tentaram, por alguns minutos, esquecer a tragédia que destruiu suas comunidades.

Mas esquecer o crime da barragem de Fundão nunca passou pela cabeça de Tiano. Meses depois, em 22 de maio, outro domingo frio, apesar de ter ficado até tarde da noite anterior assistindo seu Cruzeiro empatar por 2 a 2 com o Figueirense, ele acordou bem cedo e partiu com os familiares em direção aos escombros de Bento Rodrigues.

O cenário de devastação ficava ainda mais desolador com a movimentação de dezenas de ex-moradores espalhados; vagando; revirando os restos de suas casas embaixo da lama. Tentavam encontrar um pedaço de memória que fosse para lhes dar algum alívio.

“Tiano!”, o grito de Dona Jandira ecoou alto, rompendo o vale destruído. Ele correu ligeiro e viu o vulto de sua mãe por detrás de um amontoado de entulhos onde antes existia o seu quarto e de seus quatro irmãos.

Ao se aproximar, assustado, se surpreendeu com o sorriso no canto da boca da mãe. Nas mãos, ela segurava firme um pedaço de pano dobrado. Sem dizer uma palavra, Dona Jandira o estendeu em direção ao filho.

Sem conseguir acreditar no que via, Tiano encarou Dona Jandira com os olhos marejados de agradecimento. Era a sua camisa branca do Cruzeiro. Inacreditavelmente, intacta. Além das estrelas azuis, apenas um mancha de lama na região do ventre.

“Aquela camisa foi a única coisa minha que sobrou do dia que destruíram minha casa e o Bento”. Tiano me contou, domingo passado, enquanto eu, ele, Moniquinha e Bernardo caminhávamos pelo amontoado de rejeito, água e matagal alto a encobrir os vestígios restantes do crime do dia 5 de novembro de 2015.

Até o momento, nove anos depois, nenhum acionista, presidente/ex-presidente, diretor/ex-diretor, gestor/ex-gestor foi julgado até o fim, condenado ou preso. Por outro lado, enquanto isso, políticos estão se digladiando por novos acordos, com um só objetivo: colocar as garras no dinheiro da reparação aos atingidos que ainda resta.

Dona Jandira, dias depois daquela descoberta, lavou a camisa estrelada. A mancha de lama se foi, mas tanto Tiano quanto nós jamais iremos nos esquecer de quem a provocou.

#ParaNãoEsquecer #NãoFoiAcidente