Mercado Novo, Licor de Pimenta e Shot Boca de Fogo -  (crédito: Tulio Santos/EM/D.A Press)

Mercado Novo, Licor de Pimenta e Shot Boca de Fogo

crédito: Tulio Santos/EM/D.A Press

Modinha era aquela novidade que vinha com força total, e um ano depois já tinha perdido a força, a graça e caído no esquecimento, substituída por uma nova modinha.


Valia para a moda propriamente dita, mas valia também para a cor da estação, a comida de um país exótico, a paleta mexicana, sandálias assim ou assado, pulseira, banho de balde e, naturalmente, hábitos e novas formas de salvar o mundo e a humanidade.

 


A modinha 2023/24 em qualquer debate sobre cidades, urbanismo e acesso a moradias está contida numa palavrinha interessante que, até outro dia, só frequentava as rodas dos especialistas de plantão.


A palavra é gentrificação. Repetindo, para ir acostumando e ter como participar nas rodinhas do verão/outono 2023/24: GEN-TRI-FI-CA-ÇÃO.


Palavra difícil, bonita, substantivo feminino de muitas sílabas que significa "ação ou efeito de gentrificar (voltar a possuir certa condição nobre), ação que consiste no restabelecimento do setor imobiliário degradado que, constituído pela restauração ou revigoração de imóveis, faz com que esses lugares, supostamente populares, sejam enobrecidos".


Sim, vão usar até cansar, e sim, vai perder força e cair em desuso rapidamente, porque já foi abraçada pela política e por muita gente que entendeu o verbete, mas não teve curiosidade de entender o processo. Gente que entendeu os efeitos, mas não as causas, mas já pensa em "criar uma lei proibindo a gentrificação" (mais fácil reverter a gravidade por decreto).


Vou explicar o processo de gentrificação contando a história do SOHO londrino.


Colada à City, a zona central e distrito financeiro de Londres, estava a Cidade de Westminster, outrora uma zona rural que se transformou, ao longo de alguns séculos, no centro do poder, abrigando a Abadia de Westminster, o Parlamento e vários Ministérios, e englobando uma série de bairros como Hyde Park, Belgravia, Mayfair, Knightsbridge, Covent Garden e West End, dentre outros. A Cidade de Westminster é, a bem da verdade, a Londres turística e institucional que todos conhecem, e onde todos se hospedam, por assim dizer.


Como todas as zonas centrais de qualquer grande cidade, de quando em vez o astros se alinham e as pessoas de maior poder aquisitivo decidem se mudar para outro bairros, empobrecendo a região e, muitas vezes, arrastando consigo os negócios e levando o comércio local à decrepitude. O dinheiro e o consumo somem, os negócios mais rentáveis são substituídos por comércio de subsistência e mercados populares.


Foi o que aconteceu com Covent Garden, West End e outros setores de Westminster após o surto de cólera de 1854, trocando um própero comércio por negócios da indústria do sexo e entretenimento, dando início à identidade boêmia e forte ligação com o cinema, com o teatro e com a vida noturna em geral.


Esvaziamento de moradores, conversão de imóveis grandes e cortiços, degradação urbana, sujeira, criminalidade, insegurança e hábitos noturnos.


Difícil dizer se o preço dos imóveis foi sendo reduzido pouco a pouco, ou se desabou de uma só vez, mas o fato é que, na década de 1980, a região - agora chamada de Soho (por conta de uma praça de mesmo nome existente na região desde 1680) tinha imóveis demais sobrando, mal ocupados ou em péssimo estado de conservação.


Inteligente são os artistas e gente envolvida na vida cultural da cidade que, atraídos por infraestrutura de primeira, metrô, proximidade de tudo e imóveis a preços baixíssimos, começou a repopular a região que, aos poucos, viu florescer um ambiente vibrante, com uma população interessante e mais inovadora.


Uma coisa puxa a outra, e novos bares, novos restaurantes, produtoras de teatro e cinema, ateliês, galerias de arte, designers e empresas do setor criativo viram nesse ecossistema o local mais aderente aos seus negócios.


Na esteira dos negócios, as pessoas voltaram a se interessar pelo local, e a revitalizar os imóveis degradados.


Regeneração do local, revitalização dos imóveis e aumento da demanda nunca geram outra coisa, que não sejam encarecimento e incremento da vitalidade local, numa espiral de mais demanda, e mais encarecimento.


História sem qualquer mistério (embora interessante e pródiga de ensinamentos), equação simples.
Equação simples,mas inexorável, porque foi acessível à baixa renda somente por conta da deterioração e da falta de demanda. Tão logo a demanda retorna, os imóveis voltam a se tornar inacessíveis, até porque a reversão da degradação jamais acontece antes que a demanda esteja sendo absorvida e provocando o encarecimento.


Era acessível porque era ruim, e ficou inacessível porque ficou bom, e a única forma de viabilizar moradias acessíveis num setor com oferta limitada e demanda crescente, é com aluguéis subsidiados, ou incentivos na quantidade certa para que os empreendimentos sejam compostos por um percentual de moradias acessíveis, nas quais parte de seu custo foi compensado pelos incentivos recebidos para o restante do empreendimento.


Não há mágica. Só há matemática, muito estudo, muita conta, foco e determinação, porque a equação é simples, mas seu equilíbrio dificílimo.


A história do Soho londrino é rigorosamente a mesma do Soho de Nova Iorque, de vários bairros de Paris, da Vila Madalena em São Paulo e, se eu não estiver enganado, o futuro próximo do Centro de Belo Horizonte e do bairro de Santa Tereza.


E o que o Mercado Novo, essa - nova velha - joia de BH, tem a ver com gentrificação?


Tudo, na medida em que o custo de aluguel suba muito, ou o espaço deixe de hospedar negócios inovadores, experimentais e com identidade, cedendo espaço para grandes marcas, corporações e indústrias, coisas sem personalidade e massificadas.


Vitalidade não é multidão nem ajuntamento, mas uma quantidade adequada de pessoas com um olhar diferente, um interesse genuíno e uma afinidade pelas artes, pelas expressões culturais e pelo futuro.
O perfil do público importa, e vai determinar se o Mercado Novo vai continuar a ser a melhor expressão da sensibilidade, da cultura e da invenção belorizontina, ou se vai ser apenas uma grande praça de alimentação com um estacionamento embutido.


Fica a minha torcida.