Renato de Faria
Renato De Faria
Filósofo. Doutor em educação e mestre em Ética. Professor.
FILOSOFIA EXPLICADINHA

Ao Mestre Mujica, com carinho

Em um mundo onde todos querem parecer importantes, ele preferiu permanecer simples

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Cada um se orienta pelo mundo como bem entende — ou como deveria se entender. Logicamente, respeitando os devidos limites legais que impedem a perversidade humana de se beneficiar do sofrimento alheio. Tirando isso, acredito que as pessoas são dotadas de alguma coisa que pode lhes orientar de dentro para fora. Os gregos chamavam de psiqué ou daimon; os iluministas, de consciência; os modernos, de razão; Freud, de desejo. Seja o que for, cada um de nós é dotado desse empoderamento que faz de nós humanos.


De minha parte, gosto de pensar nas pessoas com as quais eu gostaria de dividir uma cerveja — e outras com as quais não. Cada um, nessa medida, se orienta da forma que quiser. Se Marx dividiu o mundo entre proletariado e burguesia, por que não posso dividir as pessoas pela propriedade coletiva da mesa de boteco? É assim desde o início da civilização. Viver é compartilhar a vida com aqueles com quem se quer estar perto — e não compartilhar com aqueles que se quer ver longe (se bem que as redes sociais, incubadoras de imbecis, têm invertido essa lógica).


Dentre todas as pessoas com quem não tive o privilégio de compartilhar uma gelada, Pepe Mujica lidera a lista. Sua importância é tão grande que o coloco à frente de Epicuro, Albert Camus, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa e Ronaldinho Gaúcho. Certo dia, fui questionado por um estudante, nessas conversas de início de aula, sobre com quem eu gostaria de ter uma boa conversa, caso pudesse escolher. Na lata, respondi: — Mujica! E ele logo retrucou: — Quem é esse? A culpa pelo desconhecimento não era dele, obviamente, mas de um mundo que, mesmo devedor a certas entidades humanas, não é capaz de valorizar aqueles que contribuíram para que, minimamente, se tornasse um lugar melhor.

No pouco tempo que restava para começar a aula, tentei apresentá-lo (na época) como um dos maiores filósofos vivos. Não falei de política, não entrei no debate esquerda × direita e não discorri, como fazem os pedantes, sobre a estrutura do Estado e a necessidade de transformação. Ao final da breve conversa, ele me disse: — Cara bacana esse Mujica, vou pesquisar mais sobre ele. Não sei se, de fato, isso aconteceu, mas naquele momento uma pessoa a mais reverenciou o mestre da vida autêntica.

Foi isso que Pepe representou para mim: um modo filosófico de viver, ou uma filosofia transformada em forma de vida. Por ele, fui capaz até de me envolver com aquilo que considero o assunto mais espúrio que um existente pode se interessar: o jogo do poder político — o sexo dos velhos, parafraseando Leminski. Tem gente que se interessa por política para enriquecer, outros por um ressentimento infantil, alguns para fugir da própria vida pessoal. Eu, me interessei por política por causa da filosofia de Mujica.

A ideia de viver em um sítio — uma forma de distanciamento necessário para a fruição da sabedoria, afastamento da correria doentia dos grandes centros urbanos como máquina de moer pessoas nunca foi, para ele, uma forma de isolamento, mas uma postura de afirmação do contentamento de ser, que só os interessantes conseguem viver.

Em seu sítio modesto, onde cultiva flores e silêncios, é quase um Epicuro reencarnado em mate e sandálias — um filósofo camponês que trocou o palácio presidencial por ares de galinheiro e horizontes humildes. Ali, longe do frenesi do capital e do tilintar das vaidades, ele pratica a arte difícil da suficiência: tem pouco, deseja menos, vive muito. Como um epicurista contemporâneo, entende que a liberdade habita na sombra de uma árvore e que o prazer verdadeiro não se vende em shopping center, mas se colhe com as mãos sujas de terra e o coração limpo de ambições. E, ironicamente, no mundo em que coachs vendem felicidade em 12 parcelas, Mujica a oferece de graça: basta não querer demais.


Além disso, compartilha com Epicuro a ideia de que o trabalho excessivo é a nova forma de servidão voluntária — um culto moderno ao qual se sacrifica o tempo, a saúde e a alma em troca de quinquilharias e status que mal disfarçam o vazio. Como Epicuro, Mujica não demoniza o labor, mas despreza a escravidão disfarçada de produtividade. Vê nos que vivem para trabalhar uma tragédia: homens e mulheres que trocam a breve existência por relógios caros e metas trimestrais, como se a vida fosse um currículo. Em sua filosofia de botas e barro, Mujica prega que trabalhar deve ser meio e nunca fim — pois, como ensinava o jardim epicurista, mais vale a serenidade de uma tarde sem pressa do que a glória de uma conta bancária inquieta.

Mais que todo mundo, Mujica descobriu que o poder não passa de um disfarce grotesco do medo — um jogo de vaidades entre aqueles que, no fundo, tremem diante da aleatoriedade da existência. Levar o poder a sério seria, para ele, como respeitar demais um teatro mal ensaiado: os atores acreditam ser reis, mas mal decoraram suas falas. É por isso que deveríamos introduzir um novo verbo em nosso idioma: “Mujicar”, ato de ironizar, desmoralizar, tratar o cargo mais alto da República com a simplicidade de quem sabe que não há cadeira capaz de engrandecer um ser humano. Uma forma de afirmar que a política que vale a pena não é a do palanque, mas a do cotidiano: plantar flores, ouvir o outro, negar os privilégios e rir — rir muito — de quem confunde autoridade com grandeza. Afinal, como já ensinava Epicuro, é preciso viver de forma que, mesmo coroado, ainda se prefira a sombra da figueira ao trono de mármore.

Talvez, no fundo, Mujica nunca quis ser presidente — quis apenas continuar sendo gente, e acabou tropeçando no cargo como quem pisa num cocô de cachorro no caminho do mercado: não se planeja, mas também não se nega, apenas se lava a sandália e segue em frente. E isso, para mim, é de uma grandeza absurda.

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Num mundo onde todos querem parecer importantes, ele preferiu permanecer simples. Onde todos querem falar, ele escutou. Onde todos querem aparecer, ele desapareceu em sua casinha. Talvez ele tenha sido o único político a entender que a vida não precisa ser explicada em teses, mas vivida como um churrasco no domingo — com risos, conversa fiada e um pouco de gordura. Se um dia me perguntarem o que significa viver bem, não citarei Aristóteles, nem Nietzsche, nem Byung-Chul Han. Responderei, sem pestanejar: viver bem é mujicar — verbo transitivo e intransigente, que exige alma leve, coração quieto e a sabedoria de quem sabe que, no final das contas, tudo que a gente precisa é de um lugar à sombra, uma flor no quintal e uma boa desculpa para abrir mais uma cerveja.

As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.

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