
Levem as crianças para ver o Chico Bento
A verdade é que só filosofa aquele que observa o mundo com olhos de criança
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O tema da infância sempre me encantou. Talvez porque percebo nela uma potencialidade filosófica manifesta em seus questionamentos, capazes de incomodar a pretensão de ordem dos adultos. Pena que vamos perdendo isso ao longo da vida, nos rendendo às normalizações e às obviedades da rotina. As crianças são portadoras daquele espanto admirativo que Aristóteles considerava a condição primeira do filosofar.
Ao longo da escolarização, sofremos um “tácito processo de silenciamento”. Desaprendemos a perguntar, a questionar e a levantar hipóteses. Basta dar uma volta por qualquer escola. Lá estão as crianças, inicialmente espantadas com o mundo. Mas, com o passar dos anos, aprendem a se contentar com fórmulas e respostas prontas, aquelas descritas nos gabaritos avaliativos. A ironia cruel é que, em vez de incentivar o pensamento crítico, a educação muitas vezes o anula.
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Curioso é lembrar que a filosofia, na Grécia, já foi condenada justamente por ser vista como uma brincadeira infantil: divagações sobre a origem das coisas e os rumos da vida. Os homens sérios — aqueles preocupados com os impostos e as guerras — tinham mais o que fazer. Enquanto isso, a pólis afundava em corrupção e desvios políticos. Parece que a história insiste em se repetir, não?
A verdade é que só filosofa aquele que observa o mundo com olhos de criança, enxergando tudo como se fosse a primeira vez. É uma postura subversiva, que rejeita a ordem estabelecida.
E aqui entra o filme Chico Bento e a Goiabeira Maraviosa, do diretor Fernando Frahia. Ele é filosofia pura. Não aquela trancada na torre de marfim das universidades, cheia de termos herméticos para impressionar pares acadêmicos, mas o filosofar em sua essência: o questionamento do que chamamos progresso, a relação com a natureza, o valor da vida comunitária, os limites da propriedade e do capital. E, acima de tudo, a abertura para ouvir os infantes — aqueles que chegam com a novidade da pergunta.
O filme começa valorizando a narrativa de um “causo”, o que é essencial em tempos de crianças acostumadas à fugacidade dos vídeos curtos, divididos em planos aleatórios e recheados de músicas viciantes. A Vila Abobrinha enfrenta o dilema do “progresso”, que, em teoria, deveria ser benéfico. Mas quantas vezes esse mesmo progresso chega carregado de intenções que promovem benefícios particulares em detrimento da vida coletiva? É um eco dos crimes ambientais que vitimam comunidades inteiras, das barragens às queimadas.
Salvar a Goiabeira Maraviosa é o pano de fundo para uma reflexão ética sobre a relação entre o ser humano e a natureza na qual ele também faz parte. Essa temática remete à filosofia ancestral de Ailton Krenak, traduzida no filme pela figura da avó que ensina ao neto o valor da mãe-terra e das coisas que brotam do seu ventre.
Os adultos, cegos pelas promessas do capitalismo esfomeado, resistem em ouvir as crianças. E estas, filosoficamente insistentes, conseguem pensar para além das “pessoas-negócio”, talvez porque não reneguem, em seu brincar, a essência da condição humana.
Sem nenhum celular na mão, longe de buscadores da internet ou da companhia de robôs, essas crianças se entregam a uma aprendizagem baseada em problemas reais, que impactam a comunidade inteira. Um tapa na cara das escolas formais e suas pirotecnias pedagógicas batizadas de “metodologias ativas”. A escola da Vila é um lugar de aprendizagem, não de experiências imersivas em multiversos paralelos.
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No fim das contas, quem diria que Chico Bento, o caipira que conversa com bichos e protege sua goiabeira, poderia nos ensinar tanto? Talvez o maior progresso que possamos fazer seja aprender a perguntar novamente, como fazem as crianças. E, quem sabe, salvar mais que uma árvore: salvar a nós mesmos.