As comidas de rico
Mais do que comer bem, importa o que valorizamos, o gosto que expressamos
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Nos últimos tempos, li o livro “Coisa de rico”, ouvi uma dezena de podcasts e vi quase todas as entrevistas possíveis com Michel Alcoforado. Devo confessar: adoro quando pesquisador de ciências humanas fura a bolha e cai no hype. Esse antropólogo investiga como usamos símbolos e comportamentos para performar riqueza, mesmo quando não temos tanto dinheiro assim. O luxo, para ele, está menos no quanto se tem de dinheiro e mais no que se mostra, no código social que revela onde gostaríamos de estar.
A comida, claro, é um desses códigos. Mais do que comer bem, importa o que valorizamos, o gosto que expressamos. O cenário alimentar contemporâneo se constrói em duas frentes aparentemente opostas: a fascinação pelo que vem de fora e a exaltação da comida local. Parece contradição, mas não é.
Vamos fazer uma rápida digressão temporal sobre os valores da alimentação contemporânea. O final do século 20 consagrou a gastronomia molecular. Ferran Adrià chamava seu estilo de cozinha tecnoemocional: científica, mas enraizada no repertório afetivo, no território que alimenta a memória.
Na direção contrária, ou talvez como contraponto inevitável, o mundo via crescer a “mcdonaldização”. O mesmo lanche, o mesmo sabor, a mesma lógica de padronização em qualquer esquina do mundo. A homogeneização acabou produzindo um valor inverso no início do século 21: comer algo que declare lugar. Buscar origem, quilômetro zero, vínculos com terra e gente.
Nesse movimento, o ingrediente virou protagonista no Brasil. Mas protagonismo, aqui, muitas vezes precisa vir com verniz estrangeiro para não carregar o estigma de “popular”. Aqui, virou hábito envernizar o ingrediente com técnica estrangeira.
Vimos a mandioca ganhar algum destaque na comida da elite, por exemplo, quando ela está travestida de “mil folhas de mandioca”. Nada contra. Mas não esqueçamos que cultura alimentar não diz respeito somente a ingrediente. As técnicas que usamos são fundamentais para transformarmos o alimento.
Por isso não basta colocar mandioca no prato para falar em matriz indígena. No Brasil que performa riqueza, as bocas seguem ávidas por ascendências europeias escancaradas nas comidas que escolhemos. O mexidão pode até ser um prato considerado saboroso em Minas Gerais, mas em tantos festivais de comida ele aparece travestido de “paella mineira” para ganhar mais prestígio.
Poderíamos fazer uma lista extensa de alimentos que performam riqueza no Brasil atual, de verduras orgânicas até azeite trufado. Ah, mas há aqueles que irão dizer: só se a trufa for natural, não pode ser aroma artificial. A lista pode ser longa. E os detalhes importam.
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E é justamente nesse terreno dos detalhes, nos termos certos, nas escolhas “corretas”, na etiqueta gustativa, que entra uma engrenagem fundamental: quem vai recomendar o que devemos consumir. Como lembra Steven Shapin, a modernidade retirou o gosto das práticas consideradas confiáveis de conhecimento. O paladar, antes instrumento para julgar o comestível, perdeu autoridade e virou território de especialistas.
Hoje, decidimos o que beber ou comer guiados por listas, selos e notas. O sommelier indica o vinho certo, o barista define o café mais complexo, o crítico descreve o queijo mais “equilibrado”. E nós, atentos, aprendemos o vocabulário para repetir essas distinções, não necessariamente para sentir melhor, mas para performar melhor.
Disso tudo, sobra uma dúvida difícil de escapar: sabemos realmente do que gostamos de comer, ou seguimos apenas degustando o desejo de ser outro?
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
