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Carolina Figueira
Carolina Figueira
Carolina Figueira é historiadora da alimentação e pesquisadora do gosto alimentar. Atualmente, atua como professora no ensino superior em gastronomia da Faculdade Senac Minas e faz doutorado em história pela Universidade de Évora, em Portugal, e pela Univ
HISTÓRIA À MESA

Por que o paladar do brasileiro é considerado 'excessivamente doce'

O açúcar não só adoçou e moldou nosso jeito de ser e nossa alma, como diria Gilberto Freyre, mas se tornou símbolo de devoção, identidade e celebração

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Há muitos anos, quando pisei pela primeira vez em solo francês, fui logo seduzida por aquelas vitrines maravilhosas de doces. Macarons, éclairs, tartes, tudo parecia saído de um filme. Escolhi precisamente um daqueles doces, pedi ao garçom e me sentei à mesa, ansiosa para experimentar aquela espetaculosa sobremesa. E foi inesquecível, mas não pelos motivos esperados. Na primeira garfada, algo abriu uma fenda no meu cérebro: onde estava o açúcar?

 

 

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Aquela sobremesa menos doce do que eu estava habituada me fez refletir sobre como o gosto doce se manifesta de formas tão diversas, dependendo de onde estamos. Na França, o açúcar desempenhou um papel histórico diferente daquele que conhecemos no Brasil. No auge da produção de açúcar no Atlântico, no século 16, a França não tinha uma produção tão significativa desse alimento. A diferença entre o gosto doce daqui e de lá é uma janela para histórias mais profundas sobre cultura, poder e gosto.


No Brasil, o açúcar não só adoçou e moldou nosso jeito de ser e nossa alma, como diria Gilberto Freyre, mas se tornou símbolo de devoção, identidade e celebração. Como Amanda Geraldes destaca em sua análise sobre o alfenim, doce moldado em formas delicadas nas celebrações do Divino Espírito Santo, o gosto pelo doce carrega significados que vão muito além do paladar. Ele expressa memória coletiva, fé e tradição, consolidando-se como parte essencial da nossa identidade cultural.

 


Freyre, na obra “Açúcar”, descreve o paladar brasileiro como “excessivamente doce” aos olhos estrangeiros, uma característica forjada por séculos de história, onde o açúcar assumiu papel central na formação de gostos e hábitos. Nas festividades, como na produção do alfenim ou de tantos outros doces, o açúcar transcende o prazer sensorial, tornando-se uma ponte entre o passado e o presente, entre o profano e o sagrado.


Mas nem sempre o doce teve esse valor. Durante o período moderno, o emprego de açúcar em pratos salgados, outrora valorizado na cozinha medieval, começou a ser visto como gosto vulgar. Apesar disso, práticas como o uso de frutas e geleias para acompanhar carnes de caça mantiveram o equilíbrio entre doce, ácido e salgado em preparos renomados. Essa tensão entre gosto popular e gosto refinado revela como o doce navega por diferentes esferas sociais e culturais.

 


Aqui no Brasil, o gosto doce foi moldado por uma complexa interação entre práticas indígenas, influências portuguesas e, mais tarde, pelo modelo de consumo americano. Enquanto os indígenas valorizavam o dulçor natural de méis e alimentos como a batata-doce, os colonizadores introduziram os “doces de tacho”, intensificando o uso de açúcar refinado. Essa fusão criou uma identidade doceira específica, onde técnicas e gostos herdados de diferentes culturas se entrelaçam, mas não se apagam.

 


Há muitos anos, diante daquela sobremesa francesa, em que parecia faltar algo, não imaginava como o açúcar poderia revelar histórias e memórias que dizem muito sobre nós. Talvez a doçura buscada esteja menos no paladar e mais nos caminhos capazes de revelar quem somos, por meio do gosto capaz de expressar culturas, tradições e identidades.

 

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