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A diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Paracelsus, médico, alquimista e filósofo suíço do século 16, “pai da toxicologia”, já sabia disso. Mas parece que nossos ilustres parlamentares nunca frequentaram aulas de farmacologia básica. Ou frequentaram demais, absorvendo apenas a arte de dosar venenos em quantidades que pareçam remédios.
Na Praça dos Três Poderes, laboratório a céu aberto de nossa democracia, assistimos a um experimento peculiar. Enquanto alguns tentaram derrubar as portas do laboratório, quebrar vidrarias e misturar reagentes explosivos, outros, engravatados e compenetrados, agora tentam convencer-nos de que aquilo foi apenas uma travessura de estudantes empolgados, comandados e hipnotizados por um falso Messias.
O paciente Brasil, deitado na maca, observa atônito. Tem febre democrática, pressão institucional alterada e apresenta episódios recorrentes de amnésia seletiva. Os falsos médicos do Congresso receitam um tratamento peculiar: anistia em doses cavalares por via retal. Absorve mais rápido.
"Anistiol", gritam eles, "o mais novo medicamento para tratar tentativas de golpe de estado!" Na bula, em letras miúdas que ninguém consegue ler, consta: "Efeitos colaterais incluem recorrência dos sintomas, falência institucional e morte cerebral da República".
Nosso ex-presidente, aquele mesmo que jurou pela Constituição e disse jogar dentro das quatro linhas, enquanto sonhava rasgá-la, agora ocupa um leito na enfermaria da Polícia Federal. Diagnóstico: síndrome aguda de golpismo frustrado, complicada por joias não declaradas, vacinas que sumiram do sistema e remédios falsificados para tratar COVID-19. O tratamento recomendado seria longo, com isolamento social e abstinência de poder. Mas seus devotos sectários no Congresso insistem em ministrar-lhe alta precoce. Seu primogênito, indicado para sucedê-lo, botou preço no negócio. Afinal, nessa farmácia populista, todos têm seu preço.
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Em mais de 40 anos de infectologia, nunca vi vírus tão resistente quanto o do autoritarismo. Muta constantemente, adaptando-se ao ambiente. Quando exposto à luz da democracia, esconde-se em santuários e incorpora-se facilmente ao núcleo do poder bradando por liberdade e ordem.
No anfiteatro do Senado, senadores com especialização em alquimia política tentam transformar chumbo em ouro, ou melhor, tentativa de golpe em "manifestação legítima". Usam pipetas de retórica, calibradas para diluir a gravidade dos fatos em soluções de "patriotismo exacerbado" e "indignação compreensível".
O que me intriga, como médico, é a dosagem proposta. Não é uma anistia homeopática, com traços diluídos de perdão para casos específicos. É uma overdose, uma injeção intravenosa de impunidade, que promete apagar não apenas os crimes, mas a própria memória do ocorrido.
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A dosimetria goela abaixo do brasileiro tem como antídoto único, recheadas emendas parlamentares e remendos constitucionais. O pior, uma boa parte da população toma seu cafezinho, reclama da política e, na hora H, engole o comprimido da amnésia coletiva, que seus representantes lhes oferecem. Tá na hora de mudarmos de charlatões para médicos de fato.
Na farmácia do Congresso Nacional, as prateleiras estão cheias de remédios vencidos: "Populismo Forte", "Corporativismo Plus", "Fisiologismo Composto". E agora, em destaque na vitrine, o "Anistiol Total", com a promessa de curar a República de seu apego inconveniente à responsabilização.
O médico responsável pela dosimetria da justiça observa, preocupado. Sabe que doses excessivas de impunidade produzem efeitos tóxicos no organismo social. Primeiro vem a euforia ("conseguimos!"), depois a dependência ("podemos fazer de novo"), por fim a overdose (adeus, democracia).
Enquanto isso, no corredor da emergência democrática, familiares da República aguardam notícias. Os golpistas de janeiro, aqueles que confundiram patrimônio público com quintal da casa da mãe Joana, agora se apresentam como vítimas de uma alergia democrática severa. "Foi só uma reação adversa ao resultado das urnas", alegam seus defensores. E a receita proposta? Mais "Anistiol", é claro.
Como epidemiologista, reconheço um padrão epidêmico pelo cheiro de enxofre. O golpismo é contagioso e recorrente, especialmente quando os vetores de transmissão ocupam cadeiras no parlamento. A ironia, meu caro leitor, é que os mesmos que agora prescrevem anistia geral e irrestrita com nome genérico de dosimetria, são os que, em outros tempos, defendiam tratamentos rigorosos para manifestações de rua muito menos graves. A dosimetria, aparentemente, varia conforme o peso do paciente.
No prontuário da democracia brasileira, uma anotação preocupante: "Paciente apresenta episódios recorrentes de tentativas de golpe, seguidos de surtos agudos de impunidade legislativa. Prognóstico reservado."
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Nesse nosocômio-nação chamado Brasil, parlamentares leigos insistem em receitar para seus eleitores veneno como se fosse remédio. Aliás, tiveram um ótimo mestre durante a pandemia.
Entre o remédio e o veneno, impõe-se ao brasileiro a estricnina dogmática, um alcaloide extremamente tóxico, extraído de sementes da árvore Strychnos nux-vomica da subespécie “golpista”, usado como veneno (raticida) e proibido no Brasil desde a década de 1980; ela age bloqueando receptores de racionalidade no sistema nervoso central, causando espasmos musculares severos e involuntários (convulsões) e paralisia respiratória, sendo letal mesmo em pequenas doses. E o Congresso, muito solícito, já tem a prescrição pronta, com opção do similar “Formicida Tatu”. Bom também!
As opiniões expressas neste texto são de responsabilidade exclusiva do(a) autor(a) e não refletem, necessariamente, o posicionamento e a visão do Estado de Minas sobre o tema.
