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Estado de Minas

Saída da Ford deixa os afetados pelo caso Powershift ainda mais inseguros

Cinco anos após falhas do câmbio virem à tona, não faltam clientes que se submeteram às soluções sem eficácia propostas, além de relatos de risco de acidente


06/03/2021 04:00

(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)


A saída da Ford do Brasil como fabricante de veículos deixou os clientes que esperam por uma solução definitiva para os sérios defeitos apresentados pelo câmbio Powershift ainda mais inseguros. Passados cinco anos desde que a marca propôs a primeira solução para as anomalias apresentadas nos modelos New Fiesta, Focus e EcoSport equipados com a transmissão automatizada, não faltam proprietários que já submeteram por repetidas vezes seu veículo ao reparo sugerido pela Ford, evidenciando que as soluções não têm eficácia.
 
Apesar das apurações feitas pelos ministérios públicos de Minas Gerais e de São Paulo até o momento, a Ford vem se salvando de dar uma solução definitiva para o problema por meio de “manobras” disfarçadas de Programa de Satisfação do Cliente, que, de forma geral, estenderam a garantia de algumas “fornadas” de veículos defeituosos, mas sem a clareza e o rigor de um recall. Não raro, esses reparos “em garantia” geram custos adicionais aos proprietários, que precisam pagar quantias significativas.
 
O descaso é tamanho que a própria Ford não se interessou em esclarecer à reportagem quais foram os modelos envolvidos nessas campanhas, assim como os anos que abrangem e quais componentes tiveram a garantia estendida. Como fica evidente nos diversos relatos de proprietários ouvidos pela reportagem (disponíveis abaixo), esta falta de transparência resulta em uma não uniformidade no tratamento dos clientes afetados nas concessionárias.
 
A partir da notificação do Procon-SP, a Ford estendeu a garantia de alguns componentes do câmbio de três para cinco anos, ou 160 mil quilômetros, para os modelos New Fiesta e Ford EcoSport 2013 e 2014, e do Focus 2014. Depois, o fabricante concedeu garantia de 10 anos, ou 240 mil quilômetros, para o módulo de controle de transmissão (TCM) dos três modelos, fabricados entre 17 de maio de 2012 e 30 de junho de 2015. A Ford ainda convocou proprietários do New Fiesta, EcoSport e Focus fabricados entre 17 de maio de 2012 e 2 de fevereiro de 2015 para a atualização do TCM no intuito de ampliar a capacidade de autodiagnóstico. Diante na negação da Ford em munir a reportagem com informações, os dados acima foram obtidos em arquivos de fontes especializadas.
 
Os principais sintomas apresentados pelos modelos equipados com o câmbio Powershift são trancos, reduções abruptas e acelerações intempestivas. Mas, sem dúvida, o mais grave nesta história são os diversos relatos de proprietários que se envolveram em acidentes, principalmente por uma súbita falta de potência. Em um primeiro momento, a Ford descartou a necessidade de realizar um recall porque a falha "não gera riscos à segurança dos usuários, tanto que nenhum acidente com vítimas por conta do problema foi constatado", descartando a possibilidade de perda de força motriz. Já no comunicado sobre a reprogramação do módulo TCM, a Ford admite a possibilidade de ocorrer a perda de potência do veículo. Além de não disponibilizar informações, a Ford não se interessou em prestar qualquer outro esclarecimento à reportagem.

VAI FICAR BARATO? E a preocupação dos consumidores brasileiros lesados pelas falhas do câmbio Powershift a despeito da saída da Ford do Brasil é legitima. É que a opção da marca de não mais atuar como fabricante no país elimina a possibilidade de diversas sanções aplicáveis pelo Código de Defesa do Consumidor, como a suspensão das atividades e a interdição do estabelecimento, o que já ocorreu voluntariamente.
 
No final de 2020, a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), órgão de defesa do consumidor do Ministério da Justiça, instaurou processo contra a Ford a partir da constatação de que existe uma relação entre o câmbio Powershift e a perda de potência relatada por vários clientes da marca. De acordo com Leonardo Marques, coordenador-geral de consultoria técnica e sanções administrativas do Senacon, o processo ainda está em apuração, sem uma conclusão definitiva, e a Ford ainda poderá se pronunciar.
 
De acordo com Marques, se confirmado o vício, seria o caso de um recall, já que a situação expõe o consumidor a riscos. Porém, em caso de condenação, o Senacon não tem o poder para resolver situações individuais, cabendo ao consumidor que se sentir lesado a busca de um acordo junto à Ford ou uma ação junto ao Poder Judiciário. Segundo o coordenador-geral, a determinação de ressarcimento de valores não cabe à Senacon. Entre as sanções previstas pelo CDC, a única que pode ser aplicada à Ford é a multa, que pode variar entre R$ 700 e R$ 11 milhões.

NOS EUA Enquanto isso, nos Estado Unidos, onde o câmbio Powershift apresentou os mesmos problemas relatados no Brasil, a Ford tem se comportado de maneira diferente. De acordo com reportagem publicada pelo Detroit Free Press – que já havia denunciado que as falhas da transmissão já eram conhecidas pela marca antes do lançamento –, a marca está fazendo acordos com clientes lesados.
 
Em uma ação coletiva que pode envolver até dois milhões de clientes – proprietários do New Fiesta (fabricados entre 2011 e 2016) e do Focus (de 2012 a 2016) –, o fabricante está disposto a pagar até US$ 22 mil para a recompra dos veículos problemáticos. Em 2019, a Ford gastou US$ 47 milhões na recompra de 2.666 veículos.
 
O que dizem os clientes da Ford?
 
Conversamos com vários proprietários de modelos equipados com o câmbio Powershift, que reclamam 
desde a acentuada desvalorização dos veículos no mercado de usados (a maioria conta que não teria coragem de passar a "bomba" pra frente), passando pelo estresse de ficar sem o veículo por 
dias ou meses, além dos apuros que já passaram por causa da transmissão defeituosa 
 
(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)
 
 
 “Ao entrar na BR-040, o carro apresentou falha na aceleração
e cortou as respostas no pedal de aceleração, quase 
provocando um acidente fatal. Por sorte, a carreta que 
vinha atrás percebeu e 'jogou' para a esquerda.”

Mário Fábio Titoneli – Ford Focus Powershift 2014

Foi assim, durante um traumático passeio com a família, que o Ford Focus de Mário deu o primeiro aviso de transmissão superaquecida, dando início a mais uma saga do câmbio Powersift. Depois de levar o carro à concessionária, outro susto. Mesmo com a garantia estendida, o orçamento do serviço em uma autorizada de Juiz de Fora (MG) veio no valor de R$ 7 mil. Foi o valor cobrado pelo kit atuador e um jogo de cilindros de freio como condição para a troca do módulo TCM e a embreagem. Outra condição estabelecida pela concessionária foi a troca do coxim do motor (trincado), da bomba de alta pressão defeituosa, com orçamento de R$ 3 mil. Quando o serviço foi autorizado, não foi necessário trocar o TCM, os atuadores e os cilindros, se resumindo à troca da embreagem. Portanto, na parte do câmbio o proprietário não precisou gastar. Depois desse episódio, Mário foi atrás do histórico do veículo e descobriu que, com 50 mil quilômetros rodados, foi a terceira vez que trocaram a embreagem do mesmo.
 
 
 
“Em janeiro de 2018, eu e minha família vivemos momentos de horror. O veículo apresentou uma pane repentina em plena BR-381, perdendo potência durante a ultrapassagem de uma carreta, me obrigando a fazer uma manobra arriscada e parar no acostamento.”

Cláudio Schmitz Gonser – Focus Sedan 2014

Cláudio descreve sua experiência com o modelo da Ford como uma “trágica e dramática novela pessoal”. Antes de escapar do acidente relatado acima, o modelo já havia apresentado problemas em 2016, com sintomas como lentidão nas retomadas, trepidação ao realizar as trocas em baixas rotações e diminuição da potência, quando foram efetuadas a troca das velas e reprogramação do módulo TCM. Poucos meses depois, os problemas se agravaram, apresentando subitamente perda de potência, solavancos e a recusa de trocar marchas. O veículo foi para a concessionária, tendo trocado o módulo TCM e a embreagem em garantia. Após o quase acidente relatado no início, o veículo foi mais uma vez para a autorizada, onde deram o diagnóstico de pane seca (sendo que o carro informava autonomia de 120 quilômetros), mas, por algum motivo, fizeram a reprogramação do módulo TCM. O problema aconteceu uma terceira vez, com os mesmos sintomas, obrigando Cláudio a realizar “manobras heroicas” no Anel Rodoviário de Belo Horizonte para escapar de um acidente. Resultado: segunda troca do módulo TCM e da embreagem. Seis meses depois, houve uma nova pane, com os mesmos reparos em garantia. Dois meses depois, a quinta pane, com os mesmos sintomas: perda de potência, solavancos e a não troca das marchas. Apesar disso, o diagnóstico da Ford foi o mau funcionamento dos atuadores, com um custo de R$ 5.500. Como depende do seu veículo para as tarefas cotidianas, Cláudio se viu obrigado a autorizar o conserto. 
 
 
(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)
 
 
“Era comum acontecer de o veículo deixar de dar uma resposta à aceleração, ficando inicialmente lento, para depois acelerar de uma vez só. Era tão evidente, que quem estava ao lado percebia a anomalia.”

Juliana Ribeiro – Ford EcoSport 2013

O Ford EcoSport de Juliana apresentou problemas desde sua aquisição, em setembro de 2013, com superaquecimento do câmbio quando o trânsito estava lento. Em todas as revisões, a proprietária reclamava de trepidação, mudança de marchas com as rotações altas e trancos durante as trocas. A solução encontrada sempre foi a reprogramação do módulo TCM. Como tantos outros, Juliana também teve que conviver com os riscos de um câmbio “genioso”. “Era comum acontecer de o veículo deixar de dar uma resposta à aceleração, ficando inicialmente lento, para depois acelerar de uma vez só. Era tão evidente, que quem estava ao lado percebia a anomalia. Em uma dessas vezes, atravessando um cruzamento, eu perdi o controle do carro e acabei esbarrando uma das rodas no meio-fio”, recorda. A partir daí, o câmbio também deixou de engatar a ré. Ao levar o veículo à concessionária, Juliana foi informada de que o veículo já não estava em garantia. Sem carro desde agosto do ano passado, o que compromete seu desempenho profissional, a proprietária acionou a Justiça.
 
(foto: Arquivo pessoal)
(foto: Arquivo pessoal)
 
 
“Meu Focus acaba de trocar a embreagem na garantia, 
pela terceira vez. Depois disso, a cada 30 mil 
ou 40 mil quilômetros é por minha conta.”

Jaime Benemond – Focus Fastback 2015

Jaime define a compra de seu Focus como o “sonho 
de umaposentado que adquiriu um modelo topo de linha para acompanhá-lo para o resto da sua vida, mas se transformou num pesadelo graças à Ford com seu erro de projeto”. De lá para cá, já 
foram três trocas da embreagem, aos 30 mil, 54 mil e 85 mil 
quilômetros rodados, todas em garantia. Neste mês, a garantia acaba. “Depois disso, a cada 30 mil ou 40 mil quilômetros é por minha 
conta Cerca de R$ 4 mil a cada vez”, relatou. Em conversa informal 
com um consultor técnico, Jaime foi aconselhado a vender
 o veículo, que não teria conserto definitivo. “Trocamos de 
duas a três embreagens dos carros com Powershift por dia”, 
disse o consultor. Entretanto, o proprietário descarta essa 
possibilidade, com receio de colocar em risco a vida de outros. 
 

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