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Estado de Minas TOUR INUSITADO

Passeio pelos cemitérios

"Cemitérios me atraem não pela morte, nem pelo fogo fátuo, mas pela horizontalidade e tranquilidade que jamais nos roubam o olhar de uma urbanização vertical e barulhenta"


postado em 15/10/2019 04:00

Mônica Meyer
Professora aposentada da Faculdade 
de Educação e ex-diretora do 
Museu de História Natural e 
Jardim Botânico da UFMG
 
Acervo histórico do Cemitério do Bonfim é caracterizado por esculturas decorativas de túmulos e mausoléus(foto: carlos Altman/em/d. a press)
Acervo histórico do Cemitério do Bonfim é caracterizado por esculturas decorativas de túmulos e mausoléus (foto: carlos Altman/em/d. a press)
 

Quando eu era pequena, acompanhava mamãe no Dia de Finados. Íamos cedinho ao Cemitério do Bonfim para não pegar tanto movimento. Na sacola carregávamos bucha, sabão, cera, flanela, balde e flores. Ao chegar, lavávamos a lápide de pedra mármore, passávamos cera, lustrávamos e por fim ajeitávamos ramos de agapantos sobre o túmulo de minhas tias. Rezávamos uma ave-maria e um pai-nosso. Depois visitávamos outros parentes sepultados. Eu parava para apreciar a beleza do lugar, arborizado e florido, os grandes e luxuosos jazigos decorados com esculturas art déco e belle époque de artistas consagrados. Lia as plaquinhas sobre os túmulos com atenção e me impressionava o ano de nascimento anterior a 1900 ou mesmo no princípio do século 20. Afinal, era o primeiro cemitério de BH, inaugurado em 1897, com a nova capital de Minas.
 
Cemitérios me atraem não pela morte, nem pelo fogo fátuo, mas pela horizontalidade e tranquilidade que jamais nos roubam o olhar de uma urbanização vertical e barulhenta. Do Bonfim, a vista é de encher os olhos. De lá se descortina o que restou da esplêndida Serra do Curral, explorada pela mineração de ferro. Impressionante como esses espaços aparentemente fúnebres traduzem vitalidade de uma sociedade plural com seus significados e narrativas.
 
Necróple de BH abriga obras da belle époque e art déco(foto: carlos Altman/em/d. a press)
Necróple de BH abriga obras da belle époque e art déco (foto: carlos Altman/em/d. a press)
 
 
Cemitério quase nunca faz parte de guias turísticos. Quando aparece se deve às personalidades famosas. Recordo-me de que visitei o de Buenos Aires onde Evita se encontra enterrada. Um labirinto de túmulos caiados de branco, espremidos entre ruelas estreitas.
 
Recordação diferente e bonita trago de Bonn, na Alemanha. Avistei um belo jardim florido e ao me dirigir ao local me surpreendeu descobrir um cemitério superorganizado, limpo, gramado, sem construções e decorado apenas com guirlandas de flores, frutos e sementes secas. Na hora me dei conta de que era Dia dos Mortos e emanava uma paz divina. A mesma sensação tive quando percorri as alamedas do cemitério de Aarhus, na Dinamarca, onde morei. Um grande parque gramado, com árvores centenárias, pinheiros verdinhos que se destacavam naquela paisagem de inverno pelada de folhas, flores e calor. Uma alegria tropical brotou ao caminhar por aquelas alamedas em dias de sol.
A comemoração mais diferente e distinta que presenciei no Dia dos Mortos foi em Belém do Pará, no Brasil. Nunca me esqueci daquela cena, sepulturas rodeadas de cadeiras, pratos típicos, música e muita conversa dos familiares, que passavam o dia inteiro com os parentes em celebração festiva. Uma reverencia à alegria e à convivência.
 
Anos depois, soube que no México as famílias homenageiam os entes queridos durante dias através de pequenos altares enfeitados com comidas, flores e outras oferendas. Além dessa celebração cultural, reconhecida pela Unesco como patrimônio da humanidade em 2008, introduziu recentemente o Carnaval de Calaveras, atração turística e comercial que foge ao espírito sagrado.
 
No fim de setembro retornei ao Cemitério do Bonfim através de uma visita guiada. Especialistas em história organizam um roteiro turístico temático e acompanham os visitantes, que se inscrevem previamente no programa, realizado no último domingo de cada mês. O tema selecionado foi os imigrantes que participaram da história da capital. Ao longo do percurso, ouvimos relatos sobre a construção do cemitério e suas lendas. Apreciamos as obras esculturais e artísticas dos jazigos e sepulturas das famílias Giannetti, Aziz Abras, Felice Rosso, Falci, Natali, Savassi, Kalil, Perrella, Kubitschek. Desvendamos as representações e significados presentes nos ornamentos e decorações. Visitamos o necrotério e o primeiro túmulo registrado oficialmente em 1897, da menina belga Bertha Jeagher, e o imponente jazigo de Raul Soares, que foi presidente de Minas.
 
As árvores dão ainda um toque especial naquele terreno, como os ipês rosa e amarelo em final de estação, unhas-de-vaca, sibipirunas floridas de amarelo, magnólias, palmeiras, flamboaiãs, mangueiras com pequenos frutos em crescimento, sabão-de-macaco carregadinho de frutos, ciprestes. Os pássaros em cantoria primaveril chamam a atenção. Enfim, uma aula de campo agradável sobre a história da cidade e de seus habitantes. Ao deixar o recinto, valorizei aquela ação educativa que também nos estimula a cuidar do patrimônio histórico, artístico, cultural e natural. E que contribui para evitar depredações, saques e vandalismo de um passado recente que deixou tantas marcas no Cemitério do Bonfim.


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