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Estado de Minas FOTOGRAFIA E LITERATURA

Livro do fotógrafo Edu Simões reúne retratos de 59 jovens de periferias

Este é o mesmo número de mortes diárias da juventude negra brasileira em 2014


11/12/2020 04:00 - atualizado 11/12/2020 20:35

Edu Simões fotografou jovens negros em favelas e bairros periféricos de Norte a Sul do Brasil(foto: Edu Simões/Divulgação)
Edu Simões fotografou jovens negros em favelas e bairros periféricos de Norte a Sul do Brasil (foto: Edu Simões/Divulgação)

Em agosto de 2014, o fotógrafo Edu Simões passava pelo Centro de São Paulo quando trombou, por acaso, com um protesto contra o genocídio de negros no Brasil. Mais tarde, nas redes sociais, descobriu que a marcha ocorreu de forma simultânea em outros 18 estados brasileiros. Foi o primeiro contato dele, um fotojornalista experiente, com o tema. O alvo da manifestação eram os dados assustadores do Mapa da violência, levantamento divulgado pelo governo federal, que mostravam que 59 jovens negros eram assassinados todos os dias no Brasil.

Homem branco, morador de um bairro de classe média alta em São Paulo, ele recebeu um choque de realidade.“Me assustei. Como assim? 59 jovens hoje, 59 amanhã e depois de amanhã, e assim todos os dias”, relembra Simões, acrescentando que, se fossem jovens brancos, vizinhos dele, não precisariam morrer 59 por dia para comover o país ou derrubar qualquer governo. 

Dessa experiência nasceu o projeto de um ensaio fotográfico com 59 jovens de periferias de norte a sul do Brasil, mesmo número da estatística de mortes diárias em 2014. Uma forma que Edu encontrou para ampliar o pedido de socorro e externar sua indignação social. Na última semana de novembro de 2020, Edu Simões lançou o livro 59 – Retratos da juventude negra brasileira, com texto da pesquisadora e escritora Juliana Borges e curadoria fotográfica de Cristianne Rodrigues.

Edu Simões: ideia surgiu em 2014 e imagens foram realizadas em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e Belém(foto: Edu Simões/Divulgação)
Edu Simões: ideia surgiu em 2014 e imagens foram realizadas em Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e Belém (foto: Edu Simões/Divulgação)
Mas o livro não é sobre mortes. É sobre vidas. Cada retrato é carregado de identidade e tem como pano de fundo elementos que compõem não só a realidade do retratado, mas conta também um pouquinho da história de tantos jovens negros, pobres e moradores de periferia que compartilham sonhos. “O jornalismo, que é de onde eu venho, a fotografia e todo esse sistema de comunicação na sociedade invisibilizam esse jovem. E quando não inviabiliza, associa a imagem de violência, de morte, de crime, tráfico de drogas, etc. A maneira de tratar esse assunto, pra mim, seria uma inversão desse processo de invisibilização e de criminalização”, diz Edu.

O trabalho envolveu empatia e respeito com a história de cada personagem, além de seguir a rigor o script de fotografia técnica de artistas e pessoas famosas. “Fui editor da revista Bravo por muito tempo, então, fotografei quase todos os artistas importantes da época. Fiz questão de fotografar esses jovens com as mesmas técnicas, com o mesmo cuidado, com o mesmo approach”, explica Simões. A viagem por capitais passou por Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Brasília e Belém.

Valnnei Succo, um dos fotografados no livro, não só participou do trabalho, mas também ajudou Edu a percorrer 17 favelas do Rio de Janeiro e convencer outros jovens negros a participar do projeto. “Infelizmente, a morte dos jovens negros é uma questão minimizada pela sociedade. A gente para sempre numa história que é muito irritante, que se chama 'mimimi’. É mimimi ver o colega morrendo, é mimimi ver o parente morrendo, é mimimi ver vidas se perdendo por conta de políticas não aplicadas ou políticas aplicadas para que essas pessoas morram?”, desabafa Succo, hoje com 31 anos.

Vestindo uma camisa da Seleção Brasileira de Futebol, ele foi fotografado na laje de casa, no bairro Rocha Miranda, com a cidade ao fundo. Na live de lançamento do livro, Succo explicou o motivo para a escolha da roupa e do cenário. “Que Brasil que a gente vive? O Brasil que usa camisa da Nike amarela, que diz que é patriota, mas com o pano de fundo de favela, de violência e de sofrimento, ou o Brasil que se encontra em quatro bairros do Rio de Janeiro? Então, o questionamento era esse quando vesti aquela camisa”, comenta. 

A camisa, inclusive, nem era dele. Ela seria usada para fazer um outro tipo de protesto. “O trabalho que eu iria fazer naquela camisa era colocar na frente menos 1 e, atrás dela, o nome da camisa seria Amarildo”, explica, referindo-se ao desaparecimento, em 2013, de Amarildo de Oliveira, morador da Rocinha, durante ocorrência policial.

Succo acredita que trabalhos como o ensaio fotográfico feito por Edu têm ajudado na luta contra violências sofridas pela população jovem, negra e pobre no Brasil. “Não é só o Rio de Janeiro, não é só São Paulo, não é só Alagoas, não é só a Bahia. É o Brasil inteiro dentro dessa mesma lógica, colocando sempre essa juventude num mesmo saco, como o marginal, aquele que deve ser detido, aquele que deve ser parado, aquele que não deve ser ouvido”, protesta. 

Bruno Capão, na época com 27 anos,  hoje 31, escolheu um esgoto a céu aberto, coberto de lixo, como local para ser fotografado no Jardim Lídia, comunidade em São Paulo onde atua com projetos sociais. “Escolhi porque realmente queria falar desse lugar, não só do lixo, mas também do esgoto. Isso é São Paulo: é a maior cidade do país, é o lugar mais rico”, comenta. Além do contraste social e econômico, Bruno tem outras referências do lixo ao longo de sua trajetória

Nascido e criado no Capão Redondo, bairro considerado em 1996 pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o mais violento do mundo, ele teve o lixão como local de sustento por muito tempo. “Venho dessa realidade do lixo de sobreviver, de tá no meio do lixo, de crescer enquanto criança, adolescente, jovem e não se tornar um lixo, mesmo estando no meio dele”, explica Bruno, o primeiro da família a chegar à universidade. Ele continua morando no mesmo bairro e resolveu dedicar sua vida a cuidar das pessoas que moram na região por meio de projetos sociais.

Acostumado a se despedir de familiares, amigos e vizinhos que perderam a vida por causa da violência, ele sabe que a escolha de quem vai ser o próximo tem a cor como denominador comum. “É muito louco porque como é isso? Você é sobrevivente de uma estatística de um país em que você mora, na cidade em que você mora, no local onde você habita, sabe? Cada dia que você vive é um dia a mais, porque lá no IBGE está falando que você é um cara morto, que você é uma mulher morta”, questiona.

Sobre a importância de 59 – Retratos da juventude negra brasileira, ele é enfático. “É um livro em que a gente é mais que personagem, a gente é uma realidade retratada. Porque daqui a 30 anos, isso não vai ser um livro, vai ser um legado”, afirma.

A cor da violência no Brasil

A violência contra negros no Brasil é, segundo a pesquisadora, escritora e ativista Juliana Borges, uma herança política de apagamento social. Autora dos livros Encarceramento em massa (2019) e Prisões, espelhos de nós (2020), ela assina o texto de 59, que contextualiza historicamente o fenômeno. “A ‘fundação’ de nosso país ocorre tendo a escravidão baseada na hierarquização racial como pilar. O racismo e o etnocídio são fundamentos – expressos pela violência – das desigualdades”, escreve a pesquisadora. Ela afirma que os números escancaram o racismo estrutural do país. 

O Atlas da violência, estudo organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgado em agosto de 2020, aponta que 75,5% das vítimas de homicídios no Brasil são negras, a maior proporção da década. Entre 2008 e 2018, o número de homicídios de pessoas negras no país aumentou 11,5%. Entre pessoas não negras, caiu 12,9%. A cada três assassinados, dois são negros.

A violência, conforme Juliana, está diretamente ligada à raça no Brasil, daí a urgência de falar sobre o problema do racismo. Nessa perspectiva, ela destaca a importância da provocação social que 59 apresenta. “É muito importante quando a gente tira da estatística, quando a gente corporifica. Mostra que a gente está falando de pessoas, pessoas que têm famílias, têm vidas, têm projetos, têm sonhos”, afirma.

A escritora acredita que a mudança desse cenário de violência contra a população negra passa pela tomada de consciência e adoção de políticas que reduzam as desigualdades sociais e raciais. “É importante que a gente entenda que as mortes pela violência são mortes evitáveis. A gente não estar fazendo nada para evitar essas mortes significa que a gente está corroborando com essa política de apagamento de vidas e histórias. Estamos perdendo muito como país”.


Matheus Andrade
16 anos, São Paulo
(foto: Edu Simões/Divulgação)
(foto: Edu Simões/Divulgação)
“Na semiescuridão das entranhas do viaduto Bresser estavam dois ringues para a prática de boxe, uma enorme e improvisada biblioteca, dezenas de aparelhos de musculação, pranchas para abdominais, grandes pneus e sacos de areia pendurados para ser socados continuamente. Nesse ambiente um tanto surreal, encontrei Matheus Andrade suando e feliz. Foi o primeiro jovem que fotografei.”

Bruno Coelho 
19 anos, São Paulo
(foto: Edu Simões/Divulgação)
(foto: Edu Simões/Divulgação)

“Encontrei Bruno Coelho na Vila Campestre, bairro no Centro-Sul de São Paulo, onde morava com a sua família. Foi calçando um par de sapatos de saltos muito altos e finos que o dançarino se apresentou para figurar em seu retrato. Bruno pode ser visto hoje brilhando na comissão de frente da escola de samba X9 ou apresentando seu mais recente trabalho, Termo de revolta, nos mais interessantes espaços dedicados à difusão da cultura negra da capital paulista.”

Paulo Henrique Reis
24 anos, Complexo da Maré, Rio de Janeiro
(foto: Edu Simões/Divulgação)
(foto: Edu Simões/Divulgação)

“Paulo Henrique eu o fotografei na Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, em 2018. Recém-formado em economia, experimentava pela primeira vez pertencer a um universo cultural que, por duas centenas de anos, teima em ser exclusividade das elites brancas do país. Dois anos depois, Paulo comemora com muito samba a conclusão da pós-graduação na Universidade Federal Fluminense (UFF).”  

Sandro Sussuarana
27 anos, Sussuarana Velha, Salvador, BA
(foto: Edu Simões/Divulgação)
(foto: Edu Simões/Divulgação)

“Com a frase “Mais dias de luta, menos dias de luto” estampada em sua camiseta, o poeta de rua e agitador cultural Sandro Sussuarana me recebeu em sua casa, localizada na favela Sussuarana Velha, em Salvador. Enquanto não está declamando suas poesias dentro dos ônibus ou nas ruas da capital baiana, é no Sarau da Onça que Sandro apresenta seus versos. O Sarau é um espaço cultural idealizado e criado por ele e seus amigos na favela cujo nome adotou para si.”


59 – Retratos da juventude negra brasileira
.Edu Simões
.Bazar do Tempo
.152  páginas
.R$ 98


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