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Estado de Minas MÚSICA

O novo capítulo do livro de Bob Dylan: 'O poema definitivo'

No primeiro disco de inéditas desde 2012, um dos maiores nomes da música do século 20 promove amálgama de referências diversas


postado em 10/07/2020 04:00 / atualizado em 10/07/2020 07:56

Com mais de 60 anos “na estrada”, Bob Dylan finalmente chegou ao seu Monte Sinai. Lá do alto, inatingível, recebeu do universo as tábuas da imortalidade. E as atira para baixo, no curral de terra plana em que vivemos, com seus tratados sobre a vida e a morte.

O livro de Dylan está escancarado e provavelmente nós, mortais com os pés no chão duro, vamos ignorar (assim como as “leis” de seu ancestral, o judeu Moisés). Afinal, quem se importa com letras de canções pop?

Muito já se falou sobre Rough and rowdy days, 39º álbum de carreira do homem nascido Robert Allen Zimmerman, em Duluth, Minnesota, e o primeiro de inéditas desde Tempest (2012). “Obra-prima”; “O poema definitivo”; “Pintura impressionista.” Talvez seja todas essas coisas, essa explosão sinestésica: música, artes plásticas, literatura, cinema.

Mas iria além: Dylan (79 anos de idade) deixa com esse disco seu testamento espiritual para um mundo que não é mais seu. E assim, pode atravessar o Rubicão. No seu caso, um ponto paradisíaco na ensolarada Flórida.

“Eu estudo sânscrito e árabe. Para melhorar minha mente. Eu quero fazer coisas pelo benefício de toda a humanidade”, diz um de seus personagens em My own version of you, uma das melhores do disco, com uma levada de balada country/blues de saloon. Em outro blues poderoso, a hipnotizante False prophet, ele diz que esteve na estrada todo esse tempo procurando por seu “Santo Graal, entoando canções de amor e canções de traição”.

Esse falso profeta pontua ainda: “The city of God is there on the hill. Hello stranger. A long goodbye. You ruled the land. But so do I.” Algo como: “A cidade de Deus está lá na montanha. Olá estranho! Um longo adeus. Você comandou essa terra, mas eu também”. O velho Bob dá sermões e recita mantras. Talvez devesse vir com o aviso “contém ironia”, nesses tempos sem ironia.

Pintura impressionista

Uma das coisas preciosas e trabalhosas a se fazer com esse Rough and rowdy days é justamente montar o quebra-cabeça que as longas letras das 10 músicas compõem, como em O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, a fim de chegarmos na tal pintura impressionista. Um puzzle de Monet tridimensional de mil peças, sem ordem específica. Não custa lembrar que Dylan é também um pintor, não no aspecto figurado. Ele pinta telas e faz exposições. Não bastasse ser o mais importante compositor pop da história, deixando Lennon e Bowie para trás, e, vejam só que humilde, Prêmio Nobel de Literatura.

As mil peças desse quebra-cabeça começam na valsa declamada I contain multitudes (Eu contenho multidões, referência ao poeta Walt Whitman), onde toca sonatas de Beethoven, prelúdios de Chopin, enquanto abre seu caminho na estrada beatnik da vida com o facão do arqueólogo Indiana Jones. E deságua com a genial autópsia pop do assassinato do presidente John Kennedy, Murder most foul, que foi lançada antes nas plataformas digitais com seus desconcertantes 17 minutos. Muitos não esperavam mais nada de Bob Dylan depois de seus recentes discos “cover” de Frank Sinatra. “Pensou errado!”, diria o cômico.

Não há disco com mais personagens que este. De novo, pequenas peças. Dylan é um ator brincante da vida e é lindo seu mundo que ignora a contemporaneidade insípida vegana social midiática. Aqui temos um cozido denso, caudaloso e fumegante, áspero e turbulento (“rough and rowdy”), como um blues de Jimmy Reed (aquele que influenciou os bad boys dos Rolling Stones e é tema de uma das mais vibrantes canções do álbum). Coma devagar, não se apresse, não tire conclusões.

As referências passam por nomes célebres como Shakespeare, Marx, Freud, William Blake. Mas não apenas intelectuais: entram também Patsy Cline, The Eagles, Queen, até Indiana Jones e Freddy Krueger. Dylan nasceu há 10 mil anos atrás e tem simpatia pelo demônio.

O novelo há de ser desembaraçado. Ele se revela na transcendental Key west, seu caminho para a morte e felicidade: “I was born on the wrong side of the railroad track. Like Ginsberg, Corso and Kerouac”, mencionando seus colegas On the road, na pista da oposta, a da (contra) cultura beat, produto do meio do século 20. Vale lembrar que Key West é um paraíso insular para turistas endinheirados na Flórida e, de novo, aqui temos a mui peculiar ironia dylaniana.

Um repórter do New York Times, abismado, lhe pergunta. “Mas o que quer dizer essa mistura de Indiana Jones e Anne Frank?”, ao que ele, boxeur, esquiva. “São apenas coisas que me vem à cabeça”. 

No meio das referências, os diálogos absurdos, surreais como na sua antiga obra-prima sessentista Blonde on blonde. Ele não quer ser Buda quando diz que lê sânscrito para “benefit of all mankind”. Apenas distribui seu carteado de caracteres, como num livro de William Faulkner, o eu lírico, o narrador, a voz, o personagem muda de linha a linha. Você que se vire para montar o brinquedo. Dylan, o dealer, quer sua “My own version of you”, não se esqueça.

E há, claro, a sonoridade. Blues, folk, rock and roll, valsas soturnas (tudo ótimo, bem tocado e produzido, até sua voz soa melhor que nunca), em caminho iniciado no já distante Time out of mind (1997). Curioso que, naquele disco, também considerado um clássico tardio, os falsos profetas anunciavam que Bob fazia um prenúncio da própria morte, como o fizeram David Bowie, em Blackstar, e Leonard Cohen em You want it darker.

Mas Time out mind já tem 23 anos! Ali, Dylan cantava magistralmente com sua voz cavernosa “It’s not dark yet, but it is getting there” (“Não está escuro ainda, mas está chegando lá”). Será? Não me arriscaria a cravar Rough and rowdy days como sua derradeira obra. Antes de ser ceifado, cruzar o rubicão e descansar na Flórida, é mais provável que o poeta ainda colha algumas flores no lodo da existência. Dylan é fiel, Dylan é mais!

Rough and rowdy ways
De Bob Dylan
Dez faixas, produzidaspelo cantor
265 páginas
Disponível nos serviços de streaming


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