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Estado de Minas ROMANCE

Vastas emoções no intenso agora, em novo romance de Cristovão Tezza

Em 'A tensão superficial do tempo', escritor se aproveita da atual balbúrdia brasileira para o exercício do que faz com maestria: devassar a intimidade de indivíduos desorientados pelas relações sociais e amorosas


postado em 10/07/2020 04:00 / atualizado em 10/07/2020 08:31

A publicação de um romance de Cristovão Tezza é sempre motivo de alegria. Saber que ele chega em meio à pandemia redobra a disposição para a leitura, porque o escritor curitibano, nascido em Santa Catarina, lança na página as confusões do mundo contemporâneo, incluindo origem e destino.

Faz isso com coragem rara entre os autores brasileiros: examinar literariamente o que está aí – e incomoda. Quase à maneira de um inglês, Tezza entra não na comédia, mas na tragédia de costumes, para fazer jogo fácil de palavras que aponta para uma sofisticação feita a partir do senso comum.

Em A tensão superficial do tempo, reencontra-se o narrador seguro de si, ainda que (ou por que) seu protagonista seja um professor de química incerto, tímido, cheio de dúvidas em sua tabela periódica da vida.

Cândido não se chama Cândido à toa, bien sûr. Claro que a referência à personagem naïf do francês Voltaire se apresenta para demonstrar a sátira de um país que não é para inocentes ou ingênuos, como diz, mais ou menos assim, a expressão popular. O romance – e toda obra de Tezza – olha para dentro dos indivíduos em contraste com a experiência das relações sociais.

O que se repete neste novo romance são as múltiplas perspectivas que se espalham com bastante coesão ao longo das páginas. Desta vez, Cândido está sentado no Passeio Público, em Curitiba, celular à mão, e daí vai remontando os contatos diretos com uma dezena de pessoas. São longos e densos parágrafos, nos quais as vozes se misturam, para deleite do leitor atento.

Essa amarração é uma das maiores proezas técnicas do livro, essa intercalação de falas e cenas sem tropeços para a leitura. Trata-se da química inexplicável de um filme bem montado, ainda de modo analógico. E, com isso, Tezza está a nos dizer que, se a vida não é filme (como numa canção dos Paralamas), ela é feita de imagens que vão e vêm sem pedir licença, sem ordem ou coerência.



Sim, o tempo está sempre prestes a explodir na cabeça, nessa pressão de superfície (exterior) ou na sua banalidade de bolha ou espuma. Basta uma agulha para espetar a película e colocar tudo a perder. Cândido rememora encontros com mulheres (pretendentes, amantes) e amigos de trabalho do cursinho pré-vestibular (pré-Enem). Cândido, com o leitor na cola, pensa sobre o cotidiano fílmico da mãe.  

Dona Lurdes é viciada em filmes. Passa suas horas diante de uma tela que exibe ficção. Com esse motivo ou desculpa maternal, o filho transforma-se num pirateador contumaz. Sabe tudo sobre como baixar, salvar, compartilhar. Extensões de arquivos, compressões necessárias, adição de legendas em qualquer língua. É um expert na arte de encontrar raridades do cinema na rede. Dribla o streaming para cair no torrent.

Qual, portanto, a dimensão da inocência tímida de Cândido? No país dos puxadinhos e seus contornos antiburocráticos, ele tem direito de acessar arte dessa forma? Legal, imoral ou engorda? Tezza traz um procurador quase inconveniente (em Curitiba, vejam bem) para o debate. Inclui os professores do cursinho e suas acirradas diferenças ideológicas, além dos alunos com a ainda indeterminada disposição para o cinismo.  

Não menos importante aqui são as relações entre homens e mulheres. A tradutora Beatriz, personagem central no romance Um erro emocional (2010), está de volta. Divide a cena com outros nomes quiméricos de destaque nesta trama: Hélia, Líria, Antonia. Ex-mulher, paquera proibida pela relação professor-aluna, amante casada. Na classe média curitibana supostamente exemplar, todo mundo é um pouco Dalton Trevisan.  

Uma chave de leitura vampiresca deste A tensão superficial do tempo é o otimismo de encontrar respostas que nunca serão atingidas. O autor está a nos dizer do cansaço do momento, em que todos têm opinião e solução pra tudo, particularmente nas redes sociais. O romance é um convite à experiência de vivermos no fio desencapado e real da linguagem, conscientes de todas as contradições morais, éticas, cívicas, educacionais. 

Assim, o país irracional e burro de Bolsonaro é objeto de escrutínio a partir do entrelaçamento de histórias, conversas, pensamentos. No calor da hora, Cristovão Tezza oferece uma interpretação que, se pudesse ser totalmente resumida aqui, faria a obra perder o sentido, faria desbotar a verdade literária que brota da boa literatura de um dos mais importantes escritores brasileiros.

Entre frases ditas em itálico, filmes pirateados e a procura da emoção amorosa, o romance pode ser ótima forma de passar o tempo. Ou de matar o tempo nesse espaço contínuo de insanidade que é o Brasil, lugar esquecido das metáforas, consumido pelo retrocesso nas liberdades individuais, carente de visão democrática de conjunto, descrente de reais e científicas reações químicas. Sem jamais perder a esperança. 

Sérgio de Sá é doutor em estudos literários, professor na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e autor do livro A reinvenção do escritor: literatura e mass media (UFMG)

Uma chave de leitura  vampiresca deste A tensão superficial do tempo é o otimismo de encontrar respostas que nunca serão atingidas. O autor está a nos dizer do cansaço do momento, em que todos têm opinião e solução pra tudo, particularmente nas redes sociais. O romance é um convite à experiência de vivermos no fio desencapado e real da linguagem, conscientes de todas as contradições morais, éticas, cívicas, educacionais. 


» A tensão superficial 
do tempo
» De Cristovão Tezza
» Todavia
» 265 páginas
» R$ 64,90; e-book: R$ 39
 
 

TRECHOS DO LIVRO

Um silêncio de pedra caiu em torno da mesa, rompido apenas pelo arrastar de cadeiras quando todos largaram o balcão do café e comecaram a se acomodar para a grande reunião mensal da Usina, segundo os planos democráticos do Batista, o tópico agora era como fica o nosso projeto diante das diretrizes atuais do Ministério da Educação (se é que fica alguma coisa em pé em algum lugar com esse governo, comentou alguém, o ministério é inacreditavel), e de tudo Cândido guardou apenas a expressão “deus ex machina”, o que significa mesmo?

Um dia eu soube, e pensou em discretamente consultar o Google no celular, mas alguém levantou a mão tímida para romper aquela bolha esquisita de silêncio, o que a senhora chama de corporação da esquerda, ou marxismo cultural, ou seja lá que nome ridículo seja dado a esse fantasma, engloba um conjunto imenso de conquistas civilizatórias dos próprios capitalismo e democracia ocidentais que, na turbulência e violência de sua evolução, ocorrida nos últimos duzentos anos justamente por pressão da social-democracia da esquerda europeia, acabaram por atualizar, desenhar e definir o que hoje entendemos simplesmente por “condição humana”, e Cândido viu os dedinhos no ar representando as aspas.

XX

Cândido contemplou a água verde e imóvel e sentiu uma pontada angustiante da memória, e murmurou suas maldições preferidas em sequência, caralho, porra, filha da puta, que mulher bonita, mas o que isso queria mesmo dizer? Como assim, bonita? O olhar foi um momento transgressor, aconteceu alguma coisa, era nisso que estava a beleza, não nos olhos, aquela iridescência de fios verdes que escapavam e transpareciam, nem na covinha do queixo, nem na espécie do sorriso e no seu tom organicamente provocativo, banhado de humor, ou a pele, não mais tão jovem e no entanto ainda inteira viva, um instante de passagem que se prolonga, maduro, mas de tudo ele guardou a transgressão, o que o resto da noite confirmaria, um sinal atrás do outro, evidentes como pistas deixadas num jogo de crianças, em que as chaves se escondem escancaradamente justo para serem encontradas entre risos de falsa surpresa — uma volta à infância, eu sei, mas agora com o conhecimento do bem e do mal. Se eu tivesse de fazer um retrato falado, ele pensou, seria exatamente a imagem daquele momento.

Ele olhou para ela com a mesma intensidade, ambos momentaneamente congelados, e a fotografia restou marcada, nítida,, onipresente: eu não consigo sair dali, e o Uber virou à direita na Saldanha Marinho, o caminho mais tortuoso de todos, o motorista não conhece a cidade, mas a demora o deixou feliz, eu não quero escapar desse sentimento.


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