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Estado de Minas

Um homem que desconheceu as fronteiras

A interlocução com Guimarães Rosa e a amizade com Drummond ganham destaque na biografia de Paulo Rónai, tradutor e filólogo que veio da Hungria para se tornar um dos intelectuais mais importantes do país no século 20


postado em 27/03/2020 04:00

(foto: Fernando Rabelo)
(foto: Fernando Rabelo)

''O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra; deve se aproximar dela de um outro lado para penetrar-lhe a importância literária''

Fernando Rabelo



Na Hungria, Pál. No Brasil, Paulo. Foi filólogo, linguista, tradutor, ensaísta, crítico, dicionarista, antologista e professor de idiomas.  Escapou da perseguição aos judeus no contexto histórico da Segunda Guerra Mundial. Mas antes de migrar, Pál aprendia o Brasil. Ele, que já falava o francês, o alemão, o latim, o italiano, investiu no português e publicou em Budapeste, em 1939, antologia da poesia brasileira, descobrindo e traduzindo, por conta própria, nomes como Carlos Drummond de Andrade, Mário de Andrade, Jorge de Lima e Cecília Meireles. Assim, Paulo Rónai (1907-1992) estabelecia as pontes literárias que o levariam, com o apoio do poeta e amigo diplomata Ribeiro Couto, a aportar ao Rio em março de 1941. Foi um caminho de percalços, em um tempo em que na Hungria a saída de judeus era dificultada. Pál foi encarcerado por seis meses num campo de trabalhos forçados, antes de conseguir contornar, com a ajuda de Ribeiro Couto, também as orientações de Getúlio Vargas destinadas a barrar a vinda de judeus ao Brasil. 

Foi com uma profunda pesquisa bibliográfica e com informações e relatos oferecidos por Nora Tausz Rónai, viúva e guardiã do acervo de Paulo Rónai – livros e documentos protegidos naquela que por ele era chamada de “Brilhoteca”, a  biblioteca do sítio Pois É, onde viveu, em Nova Friburgo (RJ) – , que Ana Cecilia Impellizieri Martins, doutora em literatura brasileira,  escreveu O homem que aprendeu o Brasil – A vida de Paulo Rónai (Todavia). “Do momento em que avista o Brasil como possibilidade de futuro até a chegada ao país, há um extenuante período de dois anos, tempo em que lançou uma antologia de poesia brasileira, e viveu a angústia e o medo, ficando preso por cerca de seis meses em um campo de trabalho em uma ilha no Danúbio. Mas nessa época de grandes contrastes, em que se morria pela estúpida razão do ódio racial, do outro lado do mundo a cultura ainda era vista como valor humano distinto. E, por essa razão, Paulo consegue garantir sua entrada no Brasil”, sustenta a autora.

Nesta viagem ao tempo passado, Ana Cecilia recuperou agendas, cadernetas, diários, cartas, entre outros registros inéditos sobre a trajetória de Paulo Rónai entre 1928, ainda na Hungria, e 1992, ano de sua morte no Brasil.  Nesse sentido, este é um livro que trata da biografia deste excepcional intelectual, mas também, sobre o seu salto ao estrangeiro, em outras palavras,  o direito humano de  migrar, sonhar, buscar oportunidades e a felicidade em outros países, bem descrito em Diálogo sobre a felicidade, poema de Ribeiro Couto, traduzido para o húngaro por Paulo Rónai, antes de partir ao Brasil:

“- Bendito seja o teu país.
- Estrangeiro que vieste encontrar no meu país
o bem que em vão no teu mesmo procuraste
obrigado, estrangeiro.
- Aqui vim ser feliz. Aqui é a terra da abundância e da fortuna,
(Aqui vim ser forte, rico e feliz)
- Obrigado, estrangeiro.
- Aqui ficarão vivendo os meus filhos.
Aqui nascerão os meus netos.
Aqui, saudoso embora do meu país
Fecharei os meus olhos.
Deus abençoe o teu país.
- Estrangeiro, ainda mais uma vez obrigado.
Eu sei que é verdade tudo quanto dizes.
Mas, ah! Ensina-me:
Qual é o caminho que leva ao teu país?
Qual é o caminho? Dize, estrangeiro
Eu quero ir-me! Eu quero ir-me!
Eu também quero ser feliz, estrangeiro.

Aos 33 anos, 1,64m de altura, Paulo Rónai desembarcou no Rio de Janeiro carregando uma mala, uma máquina de escrever, pouco dinheiro e uma agenda com muitos telefones. A partir dali, iniciava-se o movimento incessante de uma vida que seria dedicada à imersão definitiva no Brasil, uma viagem sem volta, ao espírito deste país tão incompreendido por tantos.  “Estou me tornando (e sentindo) cada vez mais brasileiro”, escreveu Paulo Rónai a Ribeiro Couto, cinco anos depois de sua chegada – após amargar a tristeza de não ter conseguido tirar da Hungria a noiva, Magda, de 23 anos, executada pelos nazistas em 1945. Houve no período outras dores: a morte do pai e o desaparecimento do irmão caçula. Havia sido também por meio da intervenção do amigo diplomata Ribeiro Couto, que Paulo obtivera cinco vistos para que os membros sobreviventes de sua família se juntassem a ele no Rio.

Em carta de agradecimento a Ribeiro Couto, Paulo Rónai registrou: “(...) devo-lhe a minha vida e a dos meus queridos. Nunca poderei agradecer-lhe o bastante, mas, pelo menos, procurarei por todos os meios a meu alcance demonstrar-lhe a minha gratidão (...) Tenho, porém, a vaga impressão de que você julgará seus esforços em parte compensados pelo meu esforço para me integrar no ambiente brasileiro e pelos meus livros publicados aqui, os quais – seja qual for seu valor – são inspirados pela sincera vontade de me tornar útil ao nosso Brasil”.

Foi nessa empreitada para trazer a família ao Brasil que Paulo Rónai não apenas conheceu Guimarães Rosa (1908-1967). Com a documentação encaminhada, em 1946, foi chamado ao Itamaraty para prestar esclarecimentos sobre o pedido dos vistos de seus familiares. Ali conheceu Guimarães Rosa, esse mineiro radicado no Rio de Janeiro, médico de formação, que ingressara na carreira diplomática por concurso em 1934 e, naquela ocasião, era secretário do ministro das Relações Internacionais. Guimarães Rosa havia lançado Sagarana, pela editora Uni- versal. E ciente do prestígio de Paulo Rónai, pediu-lhe a sua opinião sobre o livro. Paulo Rónai escreveria a primeira, de muitas resenhas e prefácios da obra deste realista  mágico dos sertões de Minas, que se tornaria um interlocutor permanente e amigo de vida: “O leitor vindo de fora, por mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do país para analisar o aspecto regionalista dessa obra; deve se aproximar dela de um outro lado para penetrar-lhe a importância literária”.

Naquela crítica, Paulo Rónai reconheceu pioneiramente a genialidade de Guimarães Rosa. Para descrever aquele surpreendente processo narrativo, buscou uma trilha de referências em Thornton Wilder (1897-1975), novelista e dramaturgo norte-americano, e em Luigi Pirandello (1867-1936), dramaturgo, poeta e romancista siciliano. “Paulo e Rosa falavam as mesmas línguas. O conhecimento de filólogo e o deslumbramento com as camadas de significados encontradas nos contos do escritor fizeram de Rónai um interlocutor apurado e um leitor atento. A intimidade intelectual logo tornou os dois bons amigos”, registra Ana Cecília Impellizieri Martins. Ao prefaciar Tutameia, a última obra de Rosa publicada poucos meses antes da morte do autor, Paulo Rónai sustentou: “A leitura de qualquer página de Guimarães Rosa é um conjuro”.

A relação de Paulo e Guimarães Rosa foi instigante, considera a autora. “Através da obra do escritor mineiro, está, ao mesmo tempo, mais próximo do Brasil e do mundo. Pois é exatamente no cruzamento entre o caráter singular brasileiro e universal que a obra de Rosa afirma sua genialidade. E Paulo, como poucos, abrigando vastas referências, percebeu esse traço essencial de uma obra singular. Tradutor não apenas de línguas, mas de linguagens, Rónai se tornou um dos mais importantes interlocutores de Guimarães Rosa, ficando também responsável pela organização de suas obras póstumas. Sempre discreto, nunca reivindicou o devido lugar de grande referência nos estudos da obra rosiana. Esse contato íntimo com o universo do escritor é outro ponto de aprofundamento da relação com o Brasil”, sublinha Ana Cecilia Impellizieri Martins.

Apaixonado por línguas e literaturas, Paulo Rónai não só foi um dos principais intelectuais do pós-guerra em atividade no Brasil, como tinha a sensibilidade para identificar grandes escritores: foi o primeiro a publicar a análise de obras não apenas de Guimarães Rosa, mas também de Cecilia Meireles e Carlos Drummond de Andrade. Com este, cultivou fraternas relações. “Meu amigo Paulo encontrou sua terceira pátria num sítio de montanha a que deu o nome de Pois É. Expressão que diz muita coisa, ao servir de começo e remate de conversa pedestre ou filosófica. Também de síntese de uma vida espiritual, de trabalho generoso e belo. Pois é: meu amigo Paulo completa setent’anos em sua pátria nova”, publicou Drummond em 12 de abril de 1977, no Jornal do Brasil, crônica sob o título Paulo no sítio Pois É. “Chega aos setenta como trabalhador de ideias, que sempre foi; ideias, palavras que significam ideias, mundo de papel e abstrações, tão diferente desse outro mundo triunfal dos que fazem carreira estrondosa”, continuou Drummond, que assim encerra a sua homenagem: “Esta, a glória autêntica do meu amigo Paulo Rónai: livro e coração aberto ao mundo são nele uma coisa só. Todos que o conhecem concordarão comigo. Pois é”.

A amizade com tantos gênios da literatura brasileira explica-se:  Paulo Rónai viveu em constante movimento e busca dos autores no Brasil e do Brasil. Para além do “olho clínico” na descoberta de grandes talentos, deixou inédito trabalho de divulgação de obras internacionais, traduzindo-as para o português. Entre os grandes  projetos, estão a tradução para o português de toda A comédia humana, de Balzac, e a organização, ao lado de seu também amigo Aurélio Buarque de Holanda, da antologia do conto mundial Mar de histórias. Para a autora, a tradução era apenas uma das armas de Paulo Rónai contra o caos babélico – colocado por Guimarães Rosa ao apresentar a Antologia do conto húngaro, organizada por Paulo Rónai, nos seguintes termos: “Uma tradução é saída contra Babel”.

Ana Cecilia Impelizzieri Martins assim justifica o papel de destaque alçado por Paulo Rónai no meio literário brasileiro e internacional, com especial ênfase ao esforço pessoal do personagem biografado. “Paulo é um homem de méritos e virtudes, e que apostou no trabalho e na ação como caminho possível para se salvar, deixando sua Hungria natal rumo ao Brasil, o que lhe viria a garantir um fim diferente do de seus amigos escritores – como Antal Szerb, Ákos Molnár e Endre Gelléri – assim como de sua primeira mulher, Magda Péter, todos mortos pela fúria antissemita de Adolf Hitler”.

Quando enfim imigra, Paulo Rónai dedica a sua produção à sua pátria de adoção, sem jamais perder as suas referências húngara, francesa e latina, intrínsecas à sua formação. Empenha-se ferozmente. Traduz obras brasileiras para o francês e o húngaro; trazendo para o português clássicos da França e da Hungria, enriquecendo o país com o repertório mundial de contos e conteúdos. Divulga o conhecimento mais profundo de obras de autores seminais, dedicando-lhes artigos, ensaios, resenhas. 

Nas palavras da biógrafa, foi “mestre em suas variadas atividades e na vida, exemplo de coerência, dedicação e crença nos valores da humanidade”. 

De todo o seu legado, a declaração à capacidade humana da criação. Em analogia ao prêmio Nobel de Literatura Romain Rolland (1866-1944): “Criar é matar a morte”.

O homem que aprendeu o Brasil – A vida de Paulo Rónai
. De Ana Cecilia Impellizieri 
. Todavia Editora
. 384 páginas
. R$ 69,90
. e-book: R$ 44,90

TRECHO DO LIVRO

"Em sua mesa de trabalho e nas prateleiras de suas estantes, Paulo deixou edições marcadas por sua sempre insatisfeita revisão, uma série de documentos, recortes de jornais, cartas, bilhetes, extratos de uma vida ao mesmo tempo simples e absolutamente extraordinária. À sua volta se movimentava um mundo em constante diálogo. Coleção de postais de todo tipo e de diversos cantos do planeta, fichas com endereços de amigos no Brasil, em toda a Europa, na Austrália e no Japão, livros em variadas línguas, conchas. Sim, conchas. Talvez por seu sentido de universalidade, elas tenham se transformado numa espécie de símbolo para Paulo Rónai e se espalhavam pelas superfícies de vidro dos aparadores e gavetas de sua biblioteca. As conchas, que não co-nhecem fronteiras, não têm território, que habitam o mar absoluto, são um emblema da existência desse humanista de largas fronteiras e que em seus poucos mais de cinquenta anos de vida brasileira articulou-se entre (e em) várias línguas, com várias referências culturais. Costurando pontas com a linha resistente da palavra que traduz, narra, une tempos e geografias, que preserva, engaja e constrói novas narrativas para si a partir do outro. Paulo se empenhou em fazer da literatura um espaço de diálogo universal, a despeito de todas as diferenças que enfrentou, das contingências humanas, da geografia, da aparente incomunicabilidade. Paulo Rónai foi um homem contra Babel."



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