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Estado de Minas PENSAR

Com 'Regiztros efêmeros', Beatriz Magalhães resgata arte de rua anônima

Ensaio fotopoético detalha trabalho de andarilho que usou giz para espalhar símbolos, palavras e signos cabalísticos nas ruas de Belo Horizonte por duas décadas


16/09/2022 04:00 - atualizado 15/09/2022 20:08

Beatriz Magalhães
Escritora e pesquisadora Beatriz Magalhães



Entre 1980 e 1999, nas ruas de Belo Horizonte, um anônimo andarilho preto e pobre desenhou a giz, em caligrafia e traços singulares, palavras e desenhos, grafismos tribais, signos cabalísticos e símbolos fálicos. Essas intervenções artísticas eram inscritas em muros e tapumes, postes e pavimentos da capital mineira.

As enigmáticas grafias chamaram a atenção da escritora e pesquisadora Beatriz Magalhães. Ela lança, neste sábado (17/9) o ensaio fotopoético “Regiztros efêmeros” (Editora Matéria Plástica, 2021), que contrapõe registros fotográficos da obra do artista anônimo a uma sequência de poemas de Beatriz (o texto pode ser lido como poemas isolados ou um único poema entrecortado pelas fotos). O projeto foi contemplado pela Lei Aldir Blanc/MG/2020.

O livro é um desdobramento de uma longa pesquisa empreendida pela autora que percebeu, com o tempo, em repetidas caminhadas pelas ruas, que as escritas e desenhos foram se mostrando recorrentes. Compunham, assim, uma linguagem que reconhecia a própria cidade como suporte de táticas de resistência, e que contrastava radicalmente com a linguagem oficial da cidade planejada – dada a ver pelo urbanismo e pela arquitetura que repetiam espacialmente o código positivista, de Auguste Comte. 

Sabe-se muito pouco desse artista de rua. Seu nome seria Geraldo Alves. E era notado pelas pessoas que frequentavam o centro de BH, como lembra, no livro “Uma cidade se inventa” (Scriptum, 2015), a poeta Ana Caetano, que era estudante de medicina nos anos de 1980. Ali, no burburinho urbano, era possível esbarrar nesse personagem que escrevia, com giz e letras redondas, longas frases ao longo das calçadas da região. “As roupas desgastadas e o cabelo em desalinho formavam um contraste tão agudo com a beleza e simetria das composições desenhadas na calçada que era impossível não notá-lo. Às vezes, eu parava, tentava perguntar algo ou simplesmente admirava em silêncio aquelas frases de uma congruência misteriosa, tentando descobrir de onde vinha esse turbilhão de palavras coloridas”, conta a poeta.

Em “Regiztros efêmeros”, as fotografias que salvam do esquecimento a arte de Geraldo Alves são de Beatriz Magalhães e Gerson Alvim Pessoa. Nelas, como Beatriz destaca, “as inscrições, de concisão poética e formal próxima do concretismo, evidenciam aspectos da vida no espaço urbano não evidentes aos olhares naturalizados da população. É visão crítica aguda e ímpar: a de um não cidadão, não consumidor, não contribuinte, não comprometido nem contaminado por conveniências da sociedade, do estado e do mercado, isento de conivência, concessão e autocensura”.

No livro, o poeta andarilho é definido como um “autônomo amanuense”, que registra em giz “intrigantes listagens” e ilustra “com desenhos muito elaborados de surpreendente virtuosismo”, tudo embalado em uma “simétrica, complexa e enigmática geometria”.

Em um insight, o poema compara uma dessas listagens surpreendentes ao poema de Affonso Ávila “Constelação da Usura Maior”. Ambos compõem seus respectivos textos com a enumeração de diversos bancos – no caso de Geraldo Alves, os dois primeiros versos: “Banco Cidade de São Paulo/ BDMG Banco de Desenvolvimento”.

A escrita do poeta anônimo “escorre pelos muros”, “faz ângulo nas calçadas”, “vai em direção ao meio-fio” e “esparrama no asfalto”, invade cada espaço possível das vias e artérias do centro de Belo Horizonte. Vai acumulando números, ordenando datas, precisando horas: “Em rol vai/ nomeando e/ qualificando/ pessoas// políticos// celebridades// divindades// santos// seres// coisas// edificações// estabelecimentos”. Seu último registro temporal é de 1999; então ele some e nunca mais se soube do poeta andarilho.

No posfácio “A fantasia grafolírica de Beatriz Magalhães”, o crítico Fábio Lucas assinala que, em “Regiztros efêmeros”, Beatriz segue o poeta como sombra de uma sombra, ela se torna uma “leitora de espaços e descodificadora de mensagens” que se esgueira “ao encalço das pistas do poeta fugidio”. 

Haveria muito a falar deste novo livro de Beatriz Magalhães, a começar do projeto gráfico: a capa, por exemplo, é revestida de uma lixa d’água áspera ao tato, remetendo aos suportes expostos ao tempo, como aqueles de preferência de Geraldo Alves. A contracapa traz uma imagem do poeta anônimo de costas, em seu espaço por excelência, a rua.

No fundamental “Belo Horizonte: Um espaço para a República” (Proex UFMG/Imprensa Universitária,1989), feito em conjunto com Rodrigo Ferreira Andrade, Beatriz Magalhães é apresentada como arquiteta e artista plástica. Mas ela, claro, não coube apenas nas duas vocações. Sua múltipla atuação, também como escritora e pesquisadora, tem permitido um olhar inovador sobre a constituição histórica da capital mineira. Daí, naturalmente, derivou a tese “Poetopos: Cidade, código e criação errante” (BH: Fale/UFMG, 2008), na qual pela primeira vez aparecem os estudos sobre Geraldo Alves. 

Beatriz é autora ainda das ficções “Caso oblíquo” (Autêntica, 2009; Prêmio Bolsa Programa Petrobras Cultural) e de “Sentimental com filtro” (Autêntica, 2003; 1º Prêmio Nacional Vereda Literária, 2002). 

Assim, as incursões na pesquisa acadêmica e na escrita ficcional ampliaram sua presença marcante naqueles textos relacionados com a cidade, conhecida pelos escritores e artistas que a habitam das mais diversas formas – uma legião à qual se acrescenta agora o nome desse transgressor e anônimo andarilho.

* Fabrício Marques é jornalista, autor de "Wander Piroli: Uma manada de búfalos dentro do peito" (Conceito, 2018)

Assíduo

o poeta errante há anos 
emprenha furtivo a cidade 
impregna nossos roteiros 
de sua ortografia incorreta 
de sua caligrafia exata

de sua callegrafia crítica
de sua callegrafia erótica 
tão inesperada às vezes 
que apenas se pôde anotar 

calgrafia
cáustica 

e algum raro
arroubo lírico

E vai por aí afora
ritmo insistência repetição
reincidência de vício sexo
droga ou rock ’n’ roll

(…)

Um poeta de móveis ideias fixas

dia após dia
lançando sobre a 
cidade livro livre
em registro novo 
o universo

(...)

Na urgência
sem mais tempo para 
palavras
números e 
falos
deixa nos postes 
esquemáticas
análises combinatórias 
das cores da raça 
humana

preto de cabelo branco 
branco de cabelo pardo 
branco de cabelo preto 
pardo de cabelo preto 
branco de cabelo 
branco preto de cabelo 
pardo


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