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Estado de Minas ESPECIAL

Amizade entre Lygia Fagundes Telles e Drummond atravessou décadas

Em trecho de livro, escritora narra o seu encontro com o poeta de Itabira e o início da relação afetuosa regida por cafés, conversas e cartas


08/04/2022 04:00 - atualizado 08/04/2022 07:18

Ilustração de Lygia Fagundes Telles, feita por Quinho

“Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado.”
(Trecho do conto “A caçada”, em “Antes do baile verde”, de 1970)

Ele por ela, ela por ele

“Fascinava-me, sobretudo, a coragem desse poeta”

A amizade de Lygia Fagundes Telles e Carlos Drummond de Andrade atravessou décadas e foi regida a cafés, conversas e cartas. Em correspondência datada de 18 de fevereiro de 1952, Drummond comentou os originais do romance “Ciranda de pedra”: “Você correspondeu cem por cento à confiança que os amigos depositavam na sua capacidade criadora. Seu livro ganha longe da nossa ficção raquítica de hoje (...). É um livro duro, mas sem nenhuma passagem escabrosa”.

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Catorze anos depois, foi a vez de o poeta analisar os contos do livro “Antes do baile verde”: “Sua grande força me parece estar no psicologismo oculto sob a massa de elementos realistas, assimiláveis por qualquer um. Quem quer simplesmente uma estória tem quase sempre uma estória. Quem quer a verdade subterrânea das criaturas, que o comportamento social disfarça, encontra-a maravilhosamente captada por trás da estória. Unir as duas faces, superpostas, é arte da melhor. Você consegue isso”, afirmou o poeta, que também traçou um retrato de Lygia, em desenho produzido nos anos 1970 e reproduzido em recentes edições da obra da escritora. 

A recíproca também era impregnada de palavras elogiosas e afetuosas. Como demonstra um capítulo de “Durante aquele estranho chá: memória e ficção”, no qual Lygia narra o seu encontro com o poeta de Itabira, reproduzido a seguir da mais recente edição do livro, lançada pela Companhia das Letras em 2010, com posfácio de Alberto da Costa e Silva.

Encontro com Drummond 

Foi por volta do ano de 1944 que li pela primeira vez as poesias de Carlos Drummond de Andrade. Cursava então a Faculdade de Direito e estava — como quase todos os da minha geração acadêmica — meio mergulhada ainda nas doçuras romântico-parnasianas quando de repente li o poeta de Itabira. No início, o choque. A perplexidade. Mas que poeta era aquele? E que poesia era aquela? É certo que já tinha me iniciado na poesia moderna de um Manuel Bandeira, de uma Cecília Meireles, de um Guilherme de Almeida, de um Vinicius de Moraes, de um Mário de Andrade... Mas esses eram modernos mais moderados, digamos, mais comedidos. Neles eu encontrava facilmente o lirismo, eu que ainda não dispensava o lirismo nos borbulhamentos de um Castro Alves, de um Gonçalves Dias, de um Álvares de Azevedo.

E a verdade é que eu ainda conservava interiormente a mesma apaixonada face ginasiana, quando então recitava Casimiro de Abreu. Mas que poeta é este?, fiquei me perguntando. A poesia que eu amava retratava um mundo ideal, às vezes amargo, sim, dolorido mas revestido sempre de uma certa beleza. E eis que agora, com a mesma força e com o mesmo misterioso poder, aquele poeta mineiro, aquele Carlos Drummond de Andrade me arremessava a um mundo real, tão real que chegava a me assustar com o imprevisto de sua realidade antipoética e da qual eu sempre fugira a galope. Afinal, aquele mundo de cimento armado e de funcionários públicos, de dentes de ouro e de calvas, de ratos e de mortos não em esquifes dourados, mas encaixotados convenientemente, como cebolas — aquele mundo de desencanto e de náusea devia mesmo ser cantado em versos? Foi esta a minha primeira dúvida: aquele mundo tão miseravelzinho devia ser motivo de poesia? E podia haver beleza nesse tipo de poesia?. 

Lembro-me de que estava numa aula de Economia Política. E enquanto lá na cátedra o professor pedia nossa maior atenção ao acentuar que Economia Política era uma dama esquiva, eu folheava o livro do poeta de Minas e pensava que ali estava uma poesia mais esquiva ainda. Assinalei com lápis vermelho os poemas que me pareceram mais fáceis de serem entendidos: os mais líricos. E passei furtivamente o livro a um colega com um bilhete: Leia só as poesias que marquei e me diga depois o que você achou. Já no fim da aula ele devolveu-me o volume com uma frase: “Li tudo. Completamente louco. Fabuloso”. Lembro-me ainda de que entramos numa livraria para comprar, de sociedade, um tratado de Economia Política e acabamos comprando outro livro do poeta. Ao lado, o colega de cara incendiada e cabeleira de Carlos Gomes fumava cigarro após cigarro. E ria: “Esse cara é meio louco mas é uma maravilha. Você viu aquela história da pedra? No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho...”. Apenas uma pedra no meio do caminho. Nunca mais me esquecerei desse acontecimento, eu disse no fim do ano quando fiquei para segunda época. Apenas uma pedra. Outros acontecimentos e outras pedras viriam depois, mas justamente esse poema que eu não indicara com receio de que meu colega arrepiasse carreira e não quisesse ler os demais — justamente esse poema que eu quisera que passasse em branco me marcava como aquele lápis vermelho marcando o papel da minha reprovação. 

Aos poucos, quase inconscientemente, comecei a recorrer à poesia do itabirano em face deste ou daquele acontecimento. Alguns versos trágicos, outros, divertidos mas impregnados, às vezes, de uma graça meio triste e que passei a compreender melhor: a graça dos que escorregam e ficam a esfregar no chão as solas dos sapatos, na tentativa de se livrar de uma casca que nunca existiu. A úmida graça chapliniana, com pudor da tristeza, com pudor da alegria, disfarçando o lirismo mais furtivo do que o gesto de Carlitos a esconder no bolso a flor que pretendia oferecer à bem-amada. A bem-amada que ele encontrou passeando de mãos dadas com outro. Lembro-me também — ah! as primeiras lembranças drummonianas — de que vi certa manhã um calouro rasgar enfurecido o poema inspirado nesse mesmo Charlie Chaplin. Lembro-me também de que vi um outro jovem ler esse poema com os olhos cheios de lágrimas. Comecei então a reparar que o poeta ou era aceito de modo total ou negado com a mesma veemência. Quando se falava no seu nome não havia nunca meias palavras, reticências, gestos de Conselheiro Acácio imitando um meneio de barco: “Assim, assim...”. Nunca. Ou era amado ou detestado. A medíocre aceitação moderada não combinava com aquela orgulhosa poesia de olhos enxutos, sem o recurso fácil das rimas ou da ênfase. Poesia orgulhosa, sim, mas ao mesmo tempo humilde. Poesia clara, sim, e ao mesmo tempo, tão velada! Tanto mistério, eu pensava afeiçoando-me cada vez mais aos poemas que no início afastara por considerar antipoéticos, difíceis. Eram eles que agora me fascinavam com seu grão de loucura. Uma loucura tão sábia. Tão lúcida. Tão tranquila. 

Fascinava-me, sobretudo, a coragem desse poeta, uma coragem que o levava a escrever até antipoeticamente para não sacrificar a autenticidade da sua criação, para não torcer o sentido da vida que, segundo suas deduções, não tinha mesmo nenhum sentido. Desistira do lírico para não mistificar o verdadeiro, sem demonstrar o menor interesse em bajular o público, em conquistá-lo com temas do agrado das declamadoras distintas e dos namorados iludidos ou desiludidos no amor. Até Mário de Andrade chegou a sugerir que se o poeta fizesse uma poesia menos inteligente, menos cerebral, poderia ir mais longe ainda. Por que não deixava de lado o tipo de poema-piada? “Seria preferível”, escreveu ele, “que Carlos Drummond de Andrade não fosse tão inteligente... A reação intelectual contra a timidez já está mais do que observada: provoca amargor, provoca humor, provoca o fazer graça sem franqueza, nem alegria, nem saúde.” E qual a reação do poeta? Por acaso fez alguma concessão? Por acaso aplainou mais o tema ou estilo? Não. As discussões e controvérsias a seu respeito, se o perturbaram, ninguém o soube. A vida não era uma ordem? Então, toca a prosseguir implacável, fiel consigo mesmo numa caminhada não sobre nuvens, mas na dureza do asfalto. 

Acariciando não a cabeleira da fantasia, mas agarrado aos ásperos cabelos do cotidiano e no qual se há radiosas estrelas, há também dentaduras duplas rindo solitárias nos respectivos copos. Ele tinha a intuição de que sua poesia — a falsa engraçada — obedecia simplesmente, conforme frisou o crítico Moacir Garcia, a “um processo ao qual o leitor superficial e desatento pode chamar de trocadilho, de piadismo, de anedota. Mas jamais era uma poesia gratuita e muito menos irresponsável ou esportiva”. Por essa época publiquei um livrinho de contos. Certa noite, véspera de exame, enquanto eu folheava as apostilas de Direito Civil, uma ideia a princípio meio obscura começou a me afligir. Deixei de lado as apostilas e pus-me a ler meu livro. Quando chegaram os dois colegas que eu convidara para estudarem comigo, eu já estava mergulhada na maior das aflições. É que de repente pressentira coisas... “Que coisas?”, quiseram eles saber. Eu também não sabia ao certo. Mas sentia-me triste e confusa. Apanhei o livro de Carlos Drummond de Andrade e li para eles alguns poemas. É isto que temos que conquistar, disse-lhes, é este estilo, é esta grandeza. Tudo tão reto, tão enxuto, feroz de tão enxuto. E límpido. Ele consegue ser musgo e ao mesmo tempo é pedra. E nós, o que somos? Uns piegas sem fundo e sem forma, prossegui sacudindo o livro para ambos, estreantes como eu. 

Pela primeira vez tomava consciência do problema da forma. Pela primeira vez dúvidas a meu respeito me sacudiam até as raízes, a mim e aos meus companheiros, até então radiantes com os próprios trabalhos. Discutimos ferozmente pela noite adentro. Pela noite adentro, três jovens até então seguros, confiantes, mergulharam na mais desesperada das incertezas. Estávamos inquietos e perguntávamos, nós que tivemos sempre a resposta pronta. Indagávamos, nós que sempre estivemos tão certos. A fecunda inquietação nascera em nós. Tínhamos mordido a isca e agora nos debatíamos diante da esfinge que nos interpelava serenamente: trouxeste a chave? Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível, que lhe deres: trouxeste a chave?. Trouxeste a chave?, prossegui perguntando a mim mesma. Fiquei então humilde. Fiquei desconfiada. O poeta me ensinara que sob a pele das palavras havia “cifras e códigos”. Era preciso, pois, paciência, eu que era a própria impaciência. Era preciso habilidade, eu que era estouvada. Paciência e habilidade não destituídas de amor para abrir esses cofres onde as palavras aguardavam o eleito que viria possuí-las. 

A lição maior estava nos seus versos que não tinham, contudo, a menor intenção de ensinar. Lição generosa, lição cristã, impregnada de uma ternura quase sempre irônica, é certo, mas ternura. As dores do mundo atingiam-no em cheio e ele sofria, mas seu sofrimento era contido. Grave. Um sofrimento à maneira de um Machado de Assis que também não agredia nem esbravejava: constatava, apenas constatava. E com ironia e com amor procurava ajudar o próximo, abrindo-lhes uma janela para o céu infinito da criação. Os jovens têm uma capacidade incrível de sofrer e eu tinha bons motivos de sofrimento. Apenas, após a descoberta do poeta, comecei a apelar também para o humor, colhendo não só lições de forma, mas também de comportamento. Era daquela inteligência, precisamente daquela inteligência que Mário de Andrade considerara excessiva que eu precisava. Inteligência nunca despida de bondade, de emoção e que fez Otto Maria Carpeaux exclamar: “Quero dizê-lo, com toda franqueza, que o encontro com a poesia de Carlos Drummond de Andrade me foi um conforto nas trevas”. Esse encontro foi também para mim um conforto, quero dizê-lo neste instante, uma maravilhosa lição da arte de escrever e da mais difícil ainda arte de viver. Não sei se consegui aprendê-la, mas se não consegui, a culpa não cabe ao mestre, e sim ao aprendiz. 

Ainda no começo deste ano, enquanto regressava de uma viagem a uma cidade do nosso interior e onde proferira uma conferência sobre o poeta, vinha justamente pensando em tudo isso. Pensando no quanto me enriqueci com sua obra. No quanto me enriqueci com sua amizade. Chovia e fazia frio no ônibus que varava a noite. Fechei os olhos e sorri para mim mesma ao me lembrar de que havia apenas uma meia dúzia de gatos pingados na sala: por uma dessas coincidências fatais, precisamente nessa noite estreava na cidade um circo famoso. E o meu provável público lá se fora todo para ver a bicharada... 

Mas meu coração estava aquecido por uma pequena lembrança: ao terminar a conferência, um jovem de cabeleira rebelde, e com o mesmo brilho no olhar daquele meu antigo colega, veio falar comigo. “Sou poeta”, disse ele. “Confesso que não tinha lido ainda Carlos Drummond de Andrade, mas vou fazê-lo agora, prometo”, acrescentou apertando-me a mão como se selasse um pacto. Era gelada e escura minha longa viagem de volta. Mas eu me sentia recompensada por ser responsável pela decisão daquele jovem que ficara lá atrás. Ele ia ler o poeta. Se essa leitura lhe fizesse ao menos a metade do bem que me fez, já era muito. Eu não pedia mais nada.

(Trecho de “Durante aquele estranho chá”, de Lygia Fagundes Telles)

Capinha do livro %u201CDurante aquele estranho chá: memória e ficção%u201D, de Lygia Fagundes Telles
(foto: Companhia das Letras/Reprodução)

“Durante aquele estranho chá: memória e ficção”
• Lygia Fagundes Telles
• Companhia das Letras
• 159 páginas
• R$ 52,90


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