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Estado de Minas PENSAR

Frédéric Gros: 'Não sabemos mais viver. Apenas ocupamos e consumimos'

Em passagem por BH, o filósofo francês afirma que o modo de apropriação predatória da propriedade privada está no centro das grandes crises da atualidade


21/07/2023 04:00 - atualizado 20/07/2023 23:22
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Frédéric Gros, filósofo e professor de teoria política: 'O modo de apropriação dos indígenas constitui hoje nossa sobrevivência e o nosso futuro'
Frédéric Gros, filósofo e professor de teoria política: "O modo de apropriação dos indígenas constitui hoje nossa sobrevivência e o nosso futuro" (foto: Ramon Lisboa/em/d.a press)

 

No pecado original da modernidade, os seres humanos se dissociaram dos demais seres vivos e da natureza, prenunciando a catástrofe de uma modalidade de apropriação predatória da propriedade privada: separado e crendo-se superior à natureza, legitimou-se o projeto de dominação e exploração absoluta. Longe de habitar - uma relação de inclusão e reciprocidade com o entorno e os povos que ali estão, em que aquele que habita, é também habitado -, a terra passou a ser ocupada, gerida, fatiada em busca de produtividade e lucros. 

 

Tal forma de apropriação violenta, abusiva, não se restringe à ideologia da posse absoluta sobre o ambiente, mas, sobretudo contamina todas as dimensões e interações da vida humana em seu relacionamento com o mundo: justifica a colonização e espoliação de povos que detêm mais poder sobre outros povos; a apropriação cultural perversa para beneficiar quem toma para si o que é de outro; segue legitimando a violência do homem em sua ideia de “propriedade” sobre a mulher; autoriza o massacre dos mais fortes sobre a alteridade do outro; permite abusos como a exploração do trabalho escravo, que se desdobram da ideia de que o empregador seria também dono do empregado. É uma longa lista de predações associadas à modalidade da apropriação, que detém a posse absoluta, inclusive para aniquilar.

 

“Todo pensamento ecológico é baseado sobre um só enunciado, uma só verdade, o homem e a natureza não devem ser separados; o homem não deve ser dissociado dos outros animais; da natureza”, afirma o filósofo francês Frédéric Gros, pesquisador e professor de teoria política no Institut d’Études Politiques de Paris (SciencesPo). Publicou, entre outros, os livros “Le Principe sécurité” (2012) e “Possédées” (romance histórico, 2016), organizou “As confissões da carne” (2018), quarto volume da série “História da Sexualidade”, de Foucault. É autor de “Desobedecer” (2018) e “Caminhar, uma filosofia” (2021), ambos em português, lançados pela Editora Ubu. Frédéric Gros esteve em Belo Horizonte na última segunda-feira, 17 de julho, para participar do ciclo de debates “Mutações”, no Sempre Um Papo, com o tema “Apropriação predatória e apropriação ecológica”. 

 

Em entrevista ao Pensar do Estado de Minas, Frédéric Gros afirma que o modo de apropriação predatória da propriedade privada está no centro das grandes crises da atualidade, sejam elas climáticas, sanitárias, relacionais ou geopolíticas. “Não sabemos mais viver, aprender e acolher. Ao contrário, ocupamos, consumimos, assimilamos, praticamos a violência de reduzir o entorno e o outro à posse absoluta e buscamos apenas o gozo egoísta de nos sentirmos sozinhos possuindo, o gozo cruel de privar o outro, o gozo atroz de abusar e destruir”, pontua Gros. O filósofo sustenta a mudança radical na forma de relacionamento com o mundo, com o próprio corpo, com os outros. E é na interação dos indígenas com a natureza que as sociedades ditas modernas devem mirar: “O modo de apropriação dos indígenas constitui hoje nossa sobrevivência e o nosso futuro. Nós devemos aprender com eles como ter um outro relacionamento com a natureza, que é de interação, de unidade, de entrelaçamento, de reciprocidade”. A seguir, outros trechos da entrevista de Frédéric Gros ao Pensar:

 

Qual é o conceito de propriedade, de apropriação, com o qual trabalha?

Procuro, em meu trabalho, encontrar um significado esquecido de apropriação, e para isso retomo dois usos linguísticos do termo apropriação: o uso atual e o uso filosófico, já que em nossas línguas latinas, emergiram do mesmo adjetivo ‘proprius’ duas linhas principais de apropriação, a primeira que significou um arranjo íntimo e recíproco dos seres, que eu chamo de apropriação ecológica. E a segunda, um tipo de apropriação violenta, unilateral, que eu chamo de predação. Historicamente, a apropriação significou, de modo geral, antes de tudo uma certa relação da mente ou do corpo com o mundo, uma relação pela qual se trata de arranjar, de certa forma tanto física quanto espiritualmente - corpo e espírito -, o lugar do homem na natureza e no mundo, mas também de fazer um lugar para o mundo e a natureza no corpo e no pensamento do homem. É a ideia de uma apropriação recíproca, interativa, já que apropriar-se abriria espaço para que o outro se alimente de sua diferença e se acomode na alteridade para adquirir mais autenticidade pessoal. A parte luminosa da propriedade foi definida pelo pensamento liberal, e não é completamente contestável: a propriedade empodera, responsabiliza, libera e a propriedade traz segurança. A propriedade também o torna livre de dependências que são inseparáveis da pobreza extrema. Finalmente, a propriedade deixa-o confiante quanto às contingências do futuro. Mas essa legitimação ética da propriedade privada esconde uma parte muito mais sombria de um movimento que seria algo como a valsa maldita, a dança infernal da propriedade privada: o problema é tê-la tão santificada, que não mais podemos pensar em nos apropriar de algo, sem nos fazermos donos exclusivos; o problema é quando a modalidade de apropriação que caracteriza a propriedade privada deixa de ser limitada, regulada, enquadrada por outros modos simbólicos e ecológicos de apropriação. Porque é aí que ela revela seu lado amaldiçoado, a apropriação se torna predatória. 

 

Quais são as modalidades de apropriação ecológica?

A primeira, viver. Os grandes pensadores da ecologia, quando repetem que o homem habita a Terra, enfatizam as relações de coapropriação. O homem não sofre o seu ambiente: ele o transforma. Habitar um lugar é sempre ao mesmo tempo ser habitado por ele, é uma relação de inclusão recíproca, como vivem os indígenas. Essa é uma modalidade de apropriação ecológica. A segunda grande modalidade de apropriação ecológica é a aprendizagem: aprender não é receber passivamente informações, mas é apropriar-se da informação, integrá-la em uma reflexão pessoal e dobrá-la para um uso adequado. Trata-se de formar hábitos, no sentido que Hegel usa para este termo em sua “Filosofia da mente”, que expressa e resume uma apropriação que exigiu repetição e esforço. Formar hábitos é, portanto, construir de si para si uma relação de apropriação. Estamos assim caracterizando a apropriação ecológica pela relação com o mundo e a relação com o corpo ou com a existência. Mas ainda há também a relação com os outros, e para isso, evoco o verbo acolher. Diferentemente da negação da alteridade, apropriar-se é também deixar o lugar do outro para o outro, pois é justamente como ele permanece diferente que contribui para me nutrir. É o que chamo o modelo da hospitalidade. Isso significa, por exemplo, que a última descoberta médica, de há 10 ou 15 anos, sobre a flora microbiótica, mostra que a nossa saúde não é a afirmação da plenitude do organismo, mas vem da simbiose entre nossos corpos, nossas células e as populações de bactérias. Então significa que sempre necessitamos uns dos outros. Viver, aprender, acolher. Relação com o mundo, relação com o corpo e consigo mesmo, relação com os outros. São estes os três registros principais de apropriação ecológica, uma apropriação mútua, recíproca, positiva. O que se chama de grande crise de nossa civilização se deve, acredito, ao fato de que não sabemos mais viver, aprender e acolher. Ao contrário, ocupamos, consumimos, assimilamos, praticamos a violência de reduzir o entorno e o outro à posse absoluta e buscamos apenas o gozo egoísta de nos sentirmos sozinhos possuindo, o gozo cruel de privar o outro, o gozo atroz de abusar e destruir. 

 

Em que momento passamos da apropriação recíproca, ecológica, à exploração predatória da propriedade?

Contemporaneamente, o modo de apropriação predatória da propriedade privada está no centro das grandes crises sejam elas climáticas, sanitárias, relacionais ou geopolíticas. Isso porque, apropriar-se é, na maioria das vezes, tornar-se, ilegitimamente ou mesmo violentamente, o dono daquilo que pertence primeiro a outro. E ela se tornou predatória primeiro, dentro da ideia de que “o que é meu é meu e só meu”: há a recusa da partilha, a negação da comunidade. Segundo, porque “o que é meu é só meu”, direta ou indiretamente tem necessidade de privar os outros. Por muito tempo acreditamos que a riqueza criava riqueza e que todos poderiam desfrutar dela. Hoje, infelizmente, percebemos que a apropriação predatória cria uma massa de pessoas que são desapropriadas, despossuídas de tudo. O fato é que o enriquecimento dos mais ricos leva mecanicamente ao empobrecimento dos mais pobres. Aqueles que chamamos de pobres, miseráveis, são o dejeto de nossa apropriação. E por fim, em terceiro lugar, chegamos ao núcleo mais sombrio dessa parte amaldiçoada da apropriação: a propriedade é a possibilidade, a autorização, a legitimação do abuso, o fato de que eu posso destrui-la impunemente. Na corrida pelo lucro, cada proprietário explora os recursos de seu domínio até a exaustão, exaustão do solo, extração máxima de toda riqueza. 

 

Como a religião se associa à apropriação predatória?

Efetivamente, a raiz do mal da modernidade é a separação total do homem e da natureza. O grande erro foi pensar na separação, na dissociação entre o homem e os animais ou os seres vivos em geral. Este seria o pecado original da modernidade, a causa original da catástrofe. Dizer do homem que ele está separado da natureza é afirmar imediatamente que ele é superior a ela, que ele a domina, que ela está a seu serviço. É somente a partir do momento em que pensamos na natureza e no homem como separados, que o projeto de dominação total e exploração absoluta se torna legítimo. Então não se trata mais de habitar a terra, mas de ocupá-la, isto é, de racionalizá-la, administrá-la, cortá-la em fatias de lucro, otimizar seu rendimento, aumentar sua produtividade. Essa separação autoriza um modo predatório, privado e abusivo de apropriação. Muitos pensadores ligaram essa separação entre homem e natureza ao monoteísmo, já que na religião politeísta, os deuses eram plurais e estavam presentes na natureza. Ao passo que no monoteísmo, há um deus e o homem é feito à imagem e à semelhança de deus. E há um terceiro aspecto, que torna mais complexa a resposta, é que o cristianismo é uma religião que continua sendo de encarnação e da apropriação recíproca, de entrelaçamento da interação. Pensadores ecológicos, como Bruno Latour, vão dizer que o cristianismo é uma religião profundamente ecológica, porque é da encarnação: deus está em nós, nós estamos em deus e é uma religião da apropriação recíproca.  Agora o cristianismo é um continente, há muitas correntes, inclusive aquelas que se sustentam no Antigo Testamento, que legitimam a apropriação predatória. Exatamente por isso é necessário dizer que, diferentemente da perspectiva dessas correntes, há, também muitos religiosos que defendem a perspectiva da apropriação ecológica, recíproca.

 

A impossibilidade de as democracias neoliberais darem respostas às demandas sociais mais profundas tende a conduzir o mundo à extrema direita, ao fascismo?

As democracias estão desafiadas porque há democracias que foram corrompidas, que são muito formais - não se trata apenas do direito de voto. A crise das democracias é também uma crise de uma certa forma do neoliberalismo, em que, precisamente, santificou a apropriação predatória. Existe dentro da sociedade moderna uma grande massa de excluídos da democracia, que não se reconhecem mais dentro da democracia, porque não veem o que ela lhes proporciona. Fala-se de direitos, de liberdade, mas eles estão completamente despossuídos desses conceitos. Como estão excluídos da democracia, lhes resta efetivamente, numa ilusão terrível, apostar em regimes autoritários. É o risco que estamos pagando hoje. Historicamente a ideia de dois modos de apropriação foi pela primeira vez expressa por Karl Marx, que disse que o capitalismo constitui certa forma de associação que instala a predominância da apropriação predatória. E que o problema não é a propriedade privada em si, mas o problema é a predominância absoluta da propriedade privada como modelo único de relacionamento com a natureza, com as pessoas, consigo mesmo, com o próprio corpo, etc. Ou seja, tudo é considerado sob o modo da propriedade privada. 

 

Para ver e ouvir 

“Apropriação Predatória e Apropriação Ecológica”, 

Palestra no ciclo de debates “Mutações”, do projeto Sempre um papo. Disponível a partir desta segunda-feira, 24 de julho, no Youtube. Endereço: https://www.youtube.com/@SempreUmPapo

 

 

Para ler 

Livros lançados no Brasil pela Ubu Editora 

 

“Desobedecer”

224 páginas

R$ 64,00

 

“Caminhar, uma filosofia”

224 páginas

R$ 69,90

 

“A vergonha é um sentimento revolucionário”

192 páginas

R$ 59,90 


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