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Estado de Minas SONHO IMPOSSÍVEL

Esperança: dois homens e uma mulher buscam os pais biológicos

Reportagem mostra a batalha contra os "moinhos de vento" do destino, as guerras do cotidiano, a procura da paz para tocar a vida


01/01/2023 04:00 - atualizado 01/01/2023 07:39

Carlos Luiz Soares
Carlos Luiz Soares com a certidão onde constatam nomes de pais e avós que nunca conheceu (foto: TÚLIO SANTOS/EM/D.A PRESS )

Sonhos impossíveis, guiados por um fio de esperança, em busca do desfecho. Ou quem sabe sonhos quase possíveis, mantidos acordados noite e dia, iluminados nas trevas do desconhecido pela vontade incessante de descobrir a própria história. Com o início do novo ano, os desejos se fortalecem, o coração pulsa em busca de descobertas.

Conduzida pelos relatos de uma mulher e dois homens, e seguindo as letras da canção “Sonho impossível” (“Impossible dream”)”, de um musical sobre a vida de Dom Quixote de La Mancha, esta reportagem mostra a batalha contra os “moinhos de vento” do destino, as guerras do cotidiano, a procura da paz para tocar a vida.

Tudo poderia ser natural, não fosse um espinho imaginário cravado na carne para lembrar, a todo instante, que a peleja não terminou. “Quantas guerras terei que vencer por um pouco de paz”, eis um verso traduzido, por Chico Buarque, do original de Mitch Leigh e Joe Darion.

“Quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai”, filosofa Benedito, o homem que saiu pelo mundo à procura dos pais, encontrou a mãe e quer refazer os laços afetivos. Como outro verso da canção, “quer ver uma flor brotar do impossível chão”.

Penélope esperou entre paciente e desesperada pelas respostas que ainda não vieram, e Carlos se emociona ainda mais em épocas como o Natal e o Ano-Novo com a absoluta ausência de informações sobre quem o pôs no mundo: “Sou um homem à procura da minha história”.

Busca tenaz

A angústia aperta seu coração de tal forma, que o aposentado Carlos Luiz Soares, de 64 anos, só tem uma saída: transformar a dor em palavras, lágrimas e lembranças. Se o aliado é o inconformismo, o “inimigo invencível” se esconde no escuro do desconhecido. “Sou um homem em busca da minha história. Dizem que a esperança só morre quando a gente morre, então vivo sempre com ela”, diz com a voz embargada.

A busca de Carlos Luiz é pelos pais biológicos, dos quais tem o nome assim como tem o dos avós paterno e materno. Sabe também que nasceu na Santa Casa de Belo Horizonte, em 16  de outubro de 1958. O restante foi apagado e levado para o túmulo, pois os pais adotivos dele, Benedito Francisco Verçosa e Luzia Oliveira Verçosa, morreram com o segredo.

“Todas as vezes em que eu falava com meus pais adotivos sobre minha origem, eles desconversavam, mudavam de assunto”, afirma o homem residente em Igarapé, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, casado com Nelzi Ferreira da Silva, com quem tem três filhos, e avô de Victor, de 12. “Deus me deu uma família abençoada, mas gostaria que meus filhos soubessem quem são seus verdadeiros avós. Não sei se tenho irmãos, ficaria feliz em conhecê-los.”

Em datas comemorativas como Natal, Ano-Novo e  aniversário, a emoção de Carlos Luiz transborda e os verbos são sempre conjugados no futuro do pretérito, indicando incerteza ou algo que poderia ter acontecido. “Seria muito bom estar com meus pais, abraçá-los, apresentar minha família. Não sei se estão vivos, nunca tive pistas. Tenho duas irmãs de criação registradas com o sobrenome Verçosa, mas elas também não sabem nada a respeito.”

Desde o começo da sua procura, há décadas, Carlos Luiz não encontra elementos que o tranquilizem – nem retratos, documentos ou pessoas que conheçam seu passado. Na Santa Casa de BH, acredita que poderá encontrar algum endereço nos arquivos para norteá-lo. Os pais, de acordo com a certidão de nascimento, chamam-se Alvarino Samuel Ferreira e Helena Soares de Oliveira. “Minha mãe não tinha o sobrenome do meu pai, pode ser que fosse solteira quando nasci”, conta Carlos Luiz. Já os avós paternos são José Samuel Ferreira e Marieta Ferreira, enquanto os do lado materno, José Soares de Oliveira e Engrácia Soares de Oliveira.

"Sonhar mais um sonho impossível/Lutar quando é fácil ceder/Vencer o inimigo invencível/Negar quando a regra é vender"

Trecho da música "Sonho impossível"


Realidade

Atendendo à solicitação do Estado de Minas, a assessoria da Santa Casa enviou esta nota: “A Maternidade Hilda Brandão, que faz parte do Grupo Santa Casa BH (GSCBH), informa que, infelizmente, em casos como esse, não é possível a instituição hospitalar localizar o prontuário do recém-nascido. Além disso, é importante esclarecer que, ainda que a data do nascimento presente na certidão de nascimento seja de fato 1958 e corresponda à realidade, o nascimento ocorreu há mais de 60 anos, enquanto os prontuários são mantidos sob a guarda da instituição hospitalar por 20 anos, em conformidade com a legislação vigente. A data em questão também se refere a um período anterior à sistematização dos dados. A maternidade e o GSCBH, no entanto, se solidarizam com a história (da pessoa entrevistada) e esperam que consiga encontrar as informações necessárias sobre seus pais biológicos”.

Para Carlos Luiz, a indefinição é angustiante, pois sabe que se encontra no vazio atrás da verdade”. “Se for da vontade de Deus que eu encontre meus pais, tudo bem. Mas continuo fazendo minha parte”, afirma. Ontem, 31de dezembro, Carlos Luiz e Nelzi completaram 40 anos de casados. Nelzi acompanha o sofrimento do marido: “É muita tristeza, uma história de  64 anos, e minha família o apoiou muito. Ele quer as respostas para ficar tranquilo, ser feliz”. Respostas, certamente, incluem paciência e esperança. No mais, só o tempo dirá.

Penélope sonha em encontrar suas origens
Penélope se protege da família que a criou, onde sofreu violências, e sonha em encontrar suas origens (foto: EDÉSIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)

Nós da alma

Penélope é a mulher, na mitologia grega, que espera o marido, Ulisses, voltar da guerra, enquanto tece sua trama com os fios do tempo. Já a mineira Penélope se protege nesse nome fictício para mostrar que tem esperanças de reencontrar suas origens, unindo ponto por ponto, e também, como um escudo, para se defender da família que a criou. “Seriam muitos os problemas se eu me revelasse aqui, nesta reportagem, pois as pessoas moram no interior do estado, são conhecidos lá e não convém apertar ainda mais os nós da alma”.
O relato dessa mulher faz pensar que salpicaram cacos de vidro, no chão, para ela engatinhar na mais tenra idade. Mas, esperta e inteligente, Penélope logo mostra que juntou os fragmentos e construiu um espelho. Ao ver sua imagem refletida, consegue recuperar o passado e ganhar coragem para pavimentar o futuro, carregando os traumas, porém com o possível equilíbrio.

Aos 35 anos, residindo em Belo Horizonte com o namorado e encaminhada na vida profissional, Penélope não sabe quem são seus pais biológicos. Chegou ao mundo numa grande maternidade da capital, mas conta que, inexplicavelmente, até a Declaração de Nascido Vivo, documento que acompanharia o bebê, ao sair do hospital, para o registro civil, nunca foi localizada. “É uma sucessão de erros, jamais consegui entender direito o que esconderam de mim e o porquê”.

Foi aos 5 anos de idade que a menina começou a tecer sua história e a sentir medo. Portadora de transtornos psicológicos, a mãe adotiva a espancou e tentou matá-la, apertando seu pescoço e dizendo: “Ainda bem que você não é minha filha!” Naquele momento, socorrida por duas tias, a menina perdeu, por instantes, olfato, paladar, visão. “Senti que estava morrendo. E morrer dói”. Logo depois, diante do espelho do quarto, ouviu uma voz-guia – “Viva!”, e essa força norteou sua caminhada.

"Sofrer a tortura implacável/Romper a incabível prisão/Voar num limite improvável/Tocar o inacessível chão%u201D

Trecho da música "Sonho impossível"


Espelho meu

Penélope, filha única (adotada) do casal, foi viver com as tias, mas cada uma tinha seu jeito, e ela preferiu dançar conforme a música enquanto pudesse. Saiu de casa na adolescência para não voltar, e nada foi um mar de rosas, com três tentativas de suicídio, descoberta de que é bipolar, um casamento de 12 anos desfeito e a decisão de não ter filhos – pois “eles não vêm com manual de instrução”, ironiza. Como forma de autoconhecimento, estudou filosofia, leu muito sobre psiquiatria e procurou ajuda psicológica, ficando “longe das drogas e do álcool”.

Foi em 2017, com a necessária tranquilidade, que Penélope decidiu puxar os fios da meada embaraçada da sua vida e passar a história a limpo. E ir à luta. “Tenho esperança de que vou conhecer minha origem. Estou em busca da minha identidade”.

“É minha lei, é minha questão, virar este mundo, cravar este chão” – diz o verso de “Sonho impossível” que parece perfeito para a história de Penélope.

Encruzilhada

Até onde você iria para escrever toda sua história? “Agora, sei que até onde puder”, diz Benedito (nome fictício),  que se declara um homem pobre, sem posses. É forte e alto, tem 45 anos, fala com desenvoltura, mas faltam-lhe alguns dentes e um “celular moderno”, conforme diz ao mostrar o aparelho analógico, sem internet. Morador da zona rural de uma cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte, o homem vive de bicos, consertando rádios, capinando horta, roçando lotes. Em todos os momentos, trabalhando ou não, ele carrega os pedaços da sua história como um fardo pesado, “um feixe de lenha grossa”, que já o fez perder o rumo na vida. E de casa.

“Sou filho adotivo, fui criado por um casal que gosta muito de mim, por isso não posso dizer meu nome. Eles ficariam magoados demais”, conta Benedito, que já se casou, separou, e agora está “amigado”. A vontade de conhecer os pais biológicos nunca abandonou o mineiro da Região Norte do estado, tanto que, há cinco anos, após uma “cachaçada”, saiu de casa e caiu na estrada.

“Tinha R$ 200 no bolso, fui caminhando sem destino. Peguei carona até parar em Goiás. Ganhei um pouco mais de dinheiro, um serviço aqui, outro ali, e segui para o interior de São Paulo, pois tinha uma leve pista de que meus pais biológicos eram de lá. “Meus pais adotivos nunca me contaram a verdadeira história, e não culpo ninguém, viu? Antes da doação, minha mãe me registrou, então tenho o sobrenome dela.”

"E assim, seja lá como for/Vai ter fim a infinita aflição/E o mundo vai ver uma flor/Brotar do impossível chão%u201D

Trecho da música "Sonho impossível"


Pontos e nós

Em São Paulo, com a ajuda da polícia, Benedito conseguiu localizar a mãe no interior do estado. “Acredita que ela é loura de olhos azuis? Já eu sou bem moreno...e descobri que tenho um irmão. Meu pai era militar”. Alguns pontos foram esclarecidos na conversa: a mulher trabalhava na casa de uma família e ficou grávida, de um namorado, aos 15 anos. Como os patrões não aceitavam crianças em casa, e ela não tinha para onde ir, foi obrigada a doar o bebê, embora, antes, tomando o cuidado de registrá-lo.

Benedito ficou tão atordoado com o encontro, que retornou a Minas sem pegar o telefone da mãe biológica e o endereço. “Sei que hoje, com a internet, seria fácil reencontrá-la, mas fiquei um pouco envergonhado por não ter estudo, trabalho, uma família formada. Além disso, criaria um grande problema com meus pais adotivos. Fiquei numa encruzilhada, quem sabe um dia decido essa parada. É uma aflição, uma situação quase impossível de resolver”, conta Benedito, com o semblante fechado.

O final da história de Benedito, sem dúvida, seria o último verso de “Sonho impossível, compartilhado por Carlos Luiz e Penélope”: “E assim, seja lá como for/Vai ter fim a infinita aflição/E o mundo vai ver uma flor/Brotar do impossível chão”.


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