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Estado de Minas SAÚDE MENTAL

O carnaval de Ouro Preto e o exemplo na luta antimanicomial

Bloco Os Conspirados foi criado em 2000 e tem como um dos objetivos apagar o histórico de exclusão e isolamento das pessoas com transtornos mentais


17/05/2021 18:36 - atualizado 17/05/2021 19:35

Acostumado à folia do carnaval em Ouro Preto, Angu sente o isolamento social causada pela pandemia:
Acostumado à folia do carnaval em Ouro Preto, Angu sente o isolamento social causada pela pandemia: "Que dia vai ter reunião para eu tocar, estou nervoso" (foto: Ane Souza/Arquivo Pessoal)
O 18 de maio é marcado como Dia Nacional da Luta Antimanicomial no Brasil. E uma das armas utilizadas para a inclusão das pessoas com transtornos mentais na sociedade é a arte. Em Ouro Preto, Região Central de Minas, o carnaval tem ajudado nesta missão há décadas.

A caixa, instrumento musical escolhido por Miguel das Graças Mendes para acompanhar o cortejo da Agremiação Folclórica Ouropretana Zé Pereira do Club dos Lacaios, não foi ouvida em 2021 por causa do cancelamento do carnaval, devido à pandemia da COVID-19.

O subir e descer das ladeiras, acompanhados pelos repiques da percussão, já faziam parte das atividades terapêuticas do ouropretano, de 65 anos, há três décadas.

Aos 6, disse à mãe que não iria mais se chamar Miguel e se batizou de Angu, prato favorito que aquela criança, diferente dos outros irmãos, se lambuzava em volta do fogão a lenha.

A mãe notou que ele tinha algum tipo de dificuldade na memória e na cognição, mas, segundo a irmã, Conceição Mendes, eram muitos filhos para cuidar e questões de saúde mental não eram muito conhecidas e faladas em cidades do interior.
 
Sem ter um nome relacionado à Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), Angu segue a vida livre de medicações e internações em instituições. 

Para a família, o jeito diferente dele de ser é uma característica respeitada por todos.
 
“Não sabemos qual o diagnóstico científico, desde bebê é assim, parece que não tem nada, mas tem. Às vezes não fala coisa com coisa e diz que tem alguém falando na cabeça dele. Não quis estudar e até hoje tem a cabeça de uma criança. Mas o Angu tem a sua autonomia, ele vai sozinho ao posto para acompanhar o cartão de vacinação”.
 
Angu tomou a primeira dose da vacina contra a COVID-19 em 29 abril, um alívio para a família e motivo para comemoração nas redes sociais da cidade, que via nele a angústia em ter que ficar em casa, o que gerou muita ansiedade nos últimos meses. “Que dia vai ter reunião para tocar, estou nervoso” , diz Angu.
 
A irmã conta que o percussionista não gosta de usar a máscara, mas obedece e acaba colocando porque tem muito medo de pegar a doença. “Gosta muito de viver, de encontrar com os amigos e de festas”.
 
Angu cresceu e a paixão pelo prato favorito acabou, mas o apelido permaneceu. A irmã conta que o carnaval é uma festa aguardada por ele e que os ensaios já proporcionam fortes sentimentos de inclusão.

“Todos do Zé Pereira conhecem o Angu, ele recebeu em 2019 um certificado que reconhece a dedicação e contribuição dele no bloco mais tradicional do país”, conta orgulhosa.
 
Mas nem sempre esse sentimento de inclusão e respeito foi visto na vida de Angu. Aos 20 anos, ele foi baleado na perna e sofre até hoje sequelas do tiro que levou ao ser confundido com um ladrão.

A irmã conta que Angu sempre gostou de andar pelas ruas da cidade durante a madrugada e que em uma noite, ao se assustar com a polícia, saiu correndo e os policiais acreditaram que era alguém procurado.

“Levou um tiro e desde esse dia ele ficou mais agressivo. Penso que injustiças podem ser reparadas com mais ações de inclusão, a arte salvou o meu irmão, acredito que ela pode salvar todos”.

O bloco de carnaval Os Conspirados vai contra a política de exclusão e adota outras formas de cuidado para o transtorno mental(foto: Iara Figueiredo/Arquivo Pessoal)
O bloco de carnaval Os Conspirados vai contra a política de exclusão e adota outras formas de cuidado para o transtorno mental (foto: Iara Figueiredo/Arquivo Pessoal)
 

Carnaval como inclusão social

Certo de que a intervenção cultural é uma forma terapêutica que substitui a exclusão pelo convívio social, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Ouro Preto criou, em 2000, o bloco de carnaval Os Conspirados, que tem como um dos objetivos apagar o histórico de exclusão e isolamento das pessoas com transtornos mentais, que sempre foram tratadas à margem da sociedade.
 
Formada em direito, mestre em saúde pública e doutoranda em saúde coletiva pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Iara Figueiredo afirma que o bloco de carnaval Os Conspirados vai contra a política de exclusão, é oposto ao processo de medicalização da vida cotidiana e adota outras formas de cuidado.
 
"Ele reconhece os usurários da saúde mental como cidadãos e, com isso, a saúde passa a ser um direito de ser e exercer a diferença e as diversidades. A arte e a cultura são algumas das estratégias utilizadas para inserir todos no contexto social E nada melhor que o carnaval para fazer essa inclusão".

Uma parte da história do bloco já foi estudo de caso, publicado em dezembro de 2020 na Revista de Direito Sanitário, da Universidade de São Paulo (USP). O estudo trata de uma ação judicial de improbidade administrativa que desconsiderou o bloco de carnaval dos usuários da saúde mental como ação de saúde e, com isso, reprovou a destinação de verbas do Fundo Municipal de Saúde de Ouro Preto para manutenção do bloco. 
 

Estudo de Caso

Autora da pesquisa, Iara Figueiredo conta que ação judicial questionava o uso do Fundo Municipal de Saúde na promoção do bloco alegando que a verba deveria ser exclusivamente usada para a promoção da saúde.

“Isso desqualifica o bloco como uma ação de saúde mental para o público do CAPS e quem a moveu não viu que esse público precisa de investimento”.
 
A Ação foi patrocinada em 2015 pela Procuradoria Jurídica do Município de Ouro Preto e, segundo a pesquisadora, o prefeito que assumiu em 2017, ao ter conhecimento da ação, solicitou à Justiça a sua retirada.
 
“O pedido foi aceito e a ação foi extinta. Nesse caso, o Judiciário reconheceu a inépcia da ação judicial, que já nasceu com vício por ser absurda e descabida”.
 
Porém, segundo a doutoranda em saúde coletiva, esse caso deve servir de alerta para a necessidade de aproximação dos operadores do direito com as questões de saúde.

“E serve também para demonstrar o que acontece rotineiramente com os gestores da saúde, que se veem em encruzilhadas na hora de tomar decisões, pois são bombardeados cotidianamente com ações judiciais e inquéritos civis públicos, que estão sendo banalizados”.
 
O estudo de caso vai fazer parte do  5º Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental da ABRASME, que será realizado de 3 a 7 de setembro de 2021, em Ouro Preto, em formato virtual.

A participação de Iara fará parte das discussões relacionadas à luta antimanicomial.

“Novas propostas de autonomia, com práticas integrativas, é uma conquista da Lei da Reforma Psiquiátrica 1.216/2001, mas ainda temos muitos desafios”, diz.
 

Dia Nacional da Luta Antimanicomial

Nesta terça-feira (17/5), é comemorado o Dia Nacional da Luta Antimanicomial no Brasil, em homenagem à luta dos profissionais de saúde por um tratamento mais humano aos usuários do sistema de saúde mental.

Para a pesquisadora, o maior obstáculo hoje é a política emanada do governo federal, principalmente em tempos de isolamento social caudados pela pandemia.
 
“Desde 2016 tem ocorrido um desmonte das políticas de atenção à saúde mental conquistadas em construção coletiva pelo movimento da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial”.
 
Iara Figueiredo conta que o Ministério da Saúde propôs, em dezembro de 2020, a revogação de diversas portarias que sustentam as políticas de saúde mental do SUS, como os CAPS.
 
“Eles são a base da política de saúde mental. Estamos vivendo um momento de tentativa de extinção da estrutura normativa da Política Nacional de Saúde Mental e ações de inclusão por meio da arte e da cultura não podem deixar de existir, é preciso resistir”.


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