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Estado de Minas

O que podemos aprender com comunidades já habituadas ao isolamento social

Grupos que se abriram ao mundo após longos períodos de reclusão voltam ao isolamento, agora voluntário, como forma de se proteger da ameaça mundial


postado em 19/04/2020 04:00 / atualizado em 19/04/2020 07:33

Comunidade Noiva do Cordeiro com novo figurino obrigatório: luta para se manter distante do vírus é mais uma de um longo histórico (foto: FOTOS ERICK ARAÚJO VIEIRA/NOIVA DO CORDEIRO/DIVULGAÇÃO)
Comunidade Noiva do Cordeiro com novo figurino obrigatório: luta para se manter distante do vírus é mais uma de um longo histórico (foto: FOTOS ERICK ARAÚJO VIEIRA/NOIVA DO CORDEIRO/DIVULGAÇÃO)
Uma boa dose de paciência, um punhado de gente reunida e o tempo todo do mundo recheado de responsabilidade e temperado com harmonia. Não existe receita para enfrentar o isolamento social determinado pelas autoridades em tempos de pandemia do novo coronavírus, mas alguns ingredientes são fundamentais para a convivência. Quem entende bem do assunto são homens e mulheres integrantes de grupos religiosos sob sistema de clausura, e também aqueles e aquelas que, por um século, viveram segregados devido a uma doença muito mais cruel do que a que agora apavora a humanidade: o preconceito. Se essas comunidades se abriram para o mundo nas últimas décadas, hoje o medo do novo mal conduz de novo ao recolhimento absoluto e a portas e janelas trancadas, à espera de novos dias. As razões mudaram, mas a clausura é a mesma. E o que antes tinha ares de penitência, hoje virou medida de autoproteção.

‘Prisioneiras do amor de Deus’

A madre Maria Imaculada de Jesus Hóstia, abadessa do mosteiro Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, na zona rural de Santa Luzia, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, acredita piamente na obediência como melhor maneira de enfrentar a quarentena para quem não está acostumado ao isolamento. “É preciso ficar em casa, seguir o que as autoridades falam”, diz a religiosa, lembrando que a obediência é um dos votos feitos ao ingressar na Ordem das Concepcionistas, à qual pertencem.

“Sabemos muito bem como é isso, pois somos prisioneiras do amor a Deus, numa vida de oração e recolhimento.” Para a abadessa, outro aspecto muito importante é a paciência. “Muitos consideram um martírio ficar em casa. Precisamos exercitar tanto a paciência quanto a confiança em Deus, bem como respeitar a natureza. Vivemos numa região cercada de matas, perto do Rio das Velhas. Neste momento, é fundamental procurar entender a natureza humana, e viver em harmonia, principalmente em família. Não ofender os outros é essencial.”

A tradicional missa da manhã de domingo, que enche a capela do mosteiro, está suspensa, e a hospedaria, vazia. As 17 irmãs, muitas idosas, não saem ao portão, que agora vive fechado. Por trás dele, o silêncio impera. “Fizemos uma campanha para ajudar com alimentos famílias da região. O motorista que nos atende está resolvendo tudo para nós”, conta a abadessa através da “roda”, uma parte giratória de madeira que, ao longo da história tricentenária do mosteiro, fez a comunicação com o mundo aqui de fora. Num texto escrito a lápis, a madre relata que crer na “fé, ter confiança na misericórdia de Deus, esperança e caridade” é a receita para vencer o mal.

Em campanha (Abrace Macaúbas) pelo restauro da construção colonial, a abadessa lamenta que os serviços estejam parados, diante das atuais circunstâncias. “Mas vamos continuar. Maria passa na frente!”, repete, em súplica a Nossa Senhora, a frase que se tornou seu lema.

HISTÓRIA 

Quem conhece o mosteiro de Macaúbas já viu, na entrada principal, a palavra “Clausura”, que se destaca perto da pintura que retrata um personagem fundamental nesta história: o eremita Félix da Costa, que veio da cidade de Penedo (AL), em 1708, pelo Rio São Francisco, na companhia de irmãos e sobrinhos.

Demorou três anos para chegar a Santa Luzia, onde construiu uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, de quem era devoto, início do que se tornaria o complexo religioso. No século 18, quando as ordens religiosas estavam proibidas de se instalar nas regiões de mineração por ordem da Coroa portuguesa, e havia apenas dois recolhimentos femininos em Minas: o de Macaúbas e um em Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha.

Tais espaços recebiam mulheres de várias origens, as quais podiam solicitar reclusão definitiva ou passageira. Assim, os locais abrigavam meninas e mulheres adultas, órfãs, pensionistas, devotas. Algumas se estabeleciam temporariamente, para “guardar a honra”, enquanto maridos e pais estavam ausentes da colônia, ou ainda como refúgio para aquelas consideradas desonradas pela sociedade da época.

Macaúbas recebeu figuras ilustres, como filhas da escrava alforriada Chica da Silva, que vivia com o contratador de diamantes João Fernandes, em Diamantina. A casa na qual Chica se hospedava fica ao lado do convento. Como parte do pagamento do dote das filhas, Fernandes mandou construir, entre 1767 e 1768, a chamada Ala do Serro, com mirante e 10 celas (quartos para as religiosas).

Em 1847, o recolhimento passou a funcionar também como colégio, tornando-se um dos mais tradicionais de Minas. Essa situação durou até as primeiras décadas do século 20, quando a escola entrou em decadência, devido à chegada de congregações religiosas europeias com grande experiência na educação de meninas.

Já em 1933, a construção passou a abrigar o mosteiro da Ordem da Imaculada Conceição, funcionando em sistema de clausura, em que as religiosas têm pouco contato com o mundo exterior. Muitas vezes, era preciso ordem do papa para uma freira ir a uma consulta médica. A partir do Concílio Vaticano II (1962-1965), algumas restrições foram flexibilizadas. Hoje em dia, elas podem ser vistas durante a missa na manhã de domingo, e sair para votar nas eleições, consultas médicas, resolver problemas administrativos, participar de reuniões da ordem ou fazer cursos de espiritualidade.

Confecção local foi adaptada para a produção de máscaras de proteção
Confecção local foi adaptada para a produção de máscaras de proteção
A salvo do vírus do preconceito

“O mais importante neste momento é a responsabilidade para ouvir as recomendações e não sair de casa. De jeito nenhum”, resume Delina Fernandes, de 75 anos, matriarca da comunidade rural Noiva do Cordeiro, distante 16 quilômetros do Centro de Belo Vale, na Região Central de Minas. Agora, quem chega à localidade, onde vivem mais de 300 pessoas, a maioria mulheres, dá de cara com o portão fechado 24 horas por dia e regras bem claras. E rígidas. “Não podemos correr o risco de contrair essa doença, pois moram aqui pessoas de todas as idades”, explica Flávia Emediato Fernandes, de 35, agricultora e pronta para “qualquer trabalho necessário na comunidade”.

Com o isolamento social, a comunidade, que se dedica à agricultura, teve que buscar alternativas. A fábrica de costura, onde eram feitos produtos para pets, se transformou em linha se produção de máscaras, que todos os moradores usam diariamente, por segurança. “Pela vida vale tudo. Ainda há muita gente sem acreditar na força do isolamento, mas devemos continuar com ele para evitar o contágio. Por isso estamos com os portões fechados”, afirma Delina.

Isolamento de religiosas voltou a adotar a rigidez de outros tempos(foto: GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS)
Isolamento de religiosas voltou a adotar a rigidez de outros tempos (foto: GLADYSTON RODRIGUES/EM/D.A PRESS)
ÁGUAS PASSADAS 

Para entender melhor a história de Noiva do Cordeiro, que começou a romper o isolamento em 2008, a partir de reportagens publicadas no Estado de Minas, é preciso voltar no tempo, mais exatamente ao fim do século 19. A comunidade sabe que são águas passadas e também que preconceito, intolerância e segregação podem ser letais como doenças.

Naquele tempo, Maria Senhorinha de Lima, que agora dá nome à escola local, natural da localidade próxima de Roças Novas, se casou com o descendente de franceses Arthur Pierre. Três meses depois, se sentindo infeliz, abandonou o lar e foi morar com Francisco Pereira de Araújo, no terreno onde hoje fica a comunidade. De família muito católica, Maria Senhorinha, por sua atitude corajosa ganhou, à luz do moralismo, olhares de reprovação. O casal continuou junto, construiu casa e teve 12 filhos.

Em meados do século passado, Anísio Pereira, neto de Francisco e marido de dona Delina, fundou a seita protestante Noiva do Cordeiro, que batizou o local, e converteu toda a família. A nova situação piorou ainda mais as relações com os parentes católicos que viviam por perto e impôs regras rígidas às mulheres, impedidas até de cortar os cabelos.

Em 1990, novos acontecimentos abalaram a estrutura local e, com um rompimento definitivo, ficaram na comunidade apenas pessoas que defendiam uma sociedade temente a Deus, embora sem qualquer religião. Colhendo ainda, na época, os frutos de um passado hostil, a comunidade foi se fechando e se protegendo de olhares de preconceito. Em vez de acolhida no meio social, era caluniada. Como os homens não conseguiam emprego, estigmatizadas que as famílias estavam, eles se mudaram para outras cidades em busca de sustento, enquanto as mulheres passaram a se dedicar à lavoura.

Foi assim até que, em 26 de junho de 2008, o Estado de Minas publicou reportagem contando a história da comunidade, os preconceitos que as mulheres sofriam, a impossibilidade de acesso a serviços básicos, como saúde e educação. Eram chamadas de prostitutas, por vender lingerie. Um ano depois, no Dia Internacional da Mulher, outra reportagem apontava mudanças, sendo destaque maior a interação com a população de Belo Vale e a oportunidade de geração de renda. Era o princípio de um longo processo de abertura, agora interrompido pelo isolamento voluntário.


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