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Estado de Minas

Rompimento da Barragem do Fundão segue gerando transtornos até o oceano

Série do EM mostra que as consequências do rompimento da Barragem do Fundão não param de corroer a memória de Bento Rodrigues


postado em 29/10/2017 11:00 / atualizado em 01/11/2017 08:18

Bento pós desastre: muro do Ciclo do Ouro submergiu sob a água do dique S4(foto: Leandro Couri-EM/D.A Press)
Bento pós desastre: muro do Ciclo do Ouro submergiu sob a água do dique S4 (foto: Leandro Couri-EM/D.A Press)

Mariana e Barra Longa
– Uma tragédia que não cessa segue avançando silenciosa sobre a memória da população de Bento Rodrigues, distrito do município de Mariana que há quase dois anos se viu no caminho da maior onda de lama de que se tem notícia na história do país.


O lago que se formou a 20 metros dos alicerces da capela de São Bento foi a saída que engenheiros da mineradora Samarco – responsável pela barragem que se rompeu em 5 de novembro de 2015 – encontraram para impedir que rejeitos continuassem a chegar ao Rio Doce.

Denominada dique S4, a estrutura é o último de quatro represamentos que detêm os córregos que vêm da área do desastre. Contudo, o reservatório capaz de reter 1,05 milhão de metros cúbicos de rejeito de minério frustra as esperanças que muitos fiéis ainda tinham de encontrar algumas das peças mais expressivas da fé e da cultura daquele povoado. Além de seguir corroendo outras partes do patrimônio da comunidade.

A uma semana de se completarem dois anos do desastre, percorrendo o caminho dessa tragédia, a equipe de reportagem do Estado de Minas mostra até o próximo domingo que a represa que vai solapando mais um pedaço da história de Bento Rodrigues está longe de ser o único reflexo de uma tragédia que não para de provocar danos.

Em 667 quilômetros de devastação, o rastro da lama segue assoreando rios, comprometendo a pesca e sujando até mesmo a praia na barra do Rio Doce, já no fim do trajeto da lama, na costa do Espírito Santo. Sem contar a tragédia humana das famílias que ainda lutam por indenização e para retomar seu estilo de vida, as multas não pagas e as ações judiciais de fim incerto.

Em Bento Rodrigues, comunidade mais afetada em toda essa extensão, a Fundação Renova, criada para gerenciar e executar ações de reparação, promove a guarda e a restauração de 2.300 relíquias históricas e religiosas encontradas sob os cerca de 20 milhões de metros cúbicos de rejeitos despejados entre a comunidade e a Represa de Candonga, já no município de Rio Doce.

Contudo, a própria equipe de restauro admite que isso não chega a 50% do que está perdido sob a lama. Peças de extremo valor para os fiéis e para a memória do estado continuam desaparecidas, entre elas a estátua de São Bento, o padroeiro da comunidade, de 60 centímetros, esculpida em madeira e folheada a ouro.

Conta-se que a imagem era tão querida pela comunidade que teria sido pintada para esconder as propriedades reflexivas do ouro – a fim de impedir sua transferência para um museu e também para deixar de atrair a cobiça de ladrões. “Desapareceu também o sino da igrejinha. Muitas peças ainda estão sumidas e mesmo assim resolveram fazer aquele lago. Aquela é a nossa memória, a nossa história. Eu morava bem em frente à capela e foi ali que batizamos e fizemos a primeira comunhão das nossas crianças. As coisas que sumiram tinham de ser encontradas e protegidas, não enterradas debaixo de mais minério e água”, reclama a comerciante Sandra Dometirdes Quintão, de 45 anos, uma das moradoras de Bento Rodrigues que o rompimento da barragem desalojou.

Outra estrutura que preocupa não apenas os atingidos, mas autoridades do Ministério Público e ligadas ao patrimônio histórico é uma peça de arqueologia que resistiu a três séculos de história, mas ameaça sucumbir sob o reflexo do desastre. Um muro erguido a cerca de 300 anos, no auge do Ciclo do Ouro, está submerso em mais da metade de sua extensão de 200 metros pela água represada no dique S4.

 

Cruzes dão o tom do ambiente no povoado abandonado(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Cruzes dão o tom do ambiente no povoado abandonado (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
 

UMA INCÓGNITA DEBAIXO D’ÁGUA

Um “envelopamento” da estrutura, com sacos de areia e cimento, chegou a ser feito, sob a orientação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), algo que os próprios engenheiros não sabem ao certo se vai garantir a integridade da construção histórica. Tanto que a Samarco admite que em breve será necessário esgotar o dique para avaliar os efeitos das intempéries e da submersão sobre a estrutura tricentenária. E não sabem exatamente o que vão encontrar.

“Fizemos todo o recomendado pelo Iphan para proteger o muro, mas é algo que não se sabe, ainda, como vai ficar. É uma técnica praticamente experimental. Por isso, vai ser necessário esvaziar o reservatório para ver como está a situação”, admite o engenheiro Eduardo Moreira, da mineradora.

Uma das garantias que a empresa deu à população foi a de que a água não encobriria as ruínas de Bento Rodrigues. “Deixamos a marca máxima de altura que o nível do reservatório atingiria, justamente para que todos vissem até onde a linha d’água chegaria. Agora, vai depender do que a comunidade e a Fundação Renova vão decidir para o antigo Bento, para que o dique S4 possa ser desativado após a construção da barragem de Eixo 1, que deterá definitivamente os rejeitos de Barragem do Fundão”, disse Moreira.



DEPOIMENTO
Leandro Couri
repórter fotográfico


“A cada vez que retorno aos locais por onde a lama tóxica passou, destruindo tudo o que encontrou pelo caminho, começando pelos lugarejos próximos a Mariana, às margens do Gualaxo do Norte, passando pelo Rio Doce até chegar ao mar de Regência, no Espírito Santo, a melancolia bate à minha porta. Seja pelas ruínas espalhadas no distrito de Bento Rodrigues, completamente devastado e abandonado, seja pelos objetos que encontramos meio pavimentados pela grossa camada de rejeitos, mais visíveis nos arredores de Paracatu de Baixo, Gesteira ou da sede de Barra Longa. Ao mesmo tempo, há uma mistura de torpor e surpresa causada pela força natural que persiste em regenerar o que pensávamos estar morto. E, a cada fase que retorno e tenho a oportunidade de fotografar os locais, vejo a mutação, o desejo de se consertar em pouco tempo o que a natureza levou eras para transformar em meio ambiente. Trabalho de formiguinhas, é verdade. Mas ainda  muito preguiçosas e em pequeno número para reconstruir o que foi perdido.”

ENQUANTO ISSO...
História recontada


Se o desaparecimento de símbolos da comunidade é uma agonia, o resgate de peças muitas vezes tidas como de menor destaque faz ressurgir de forma espontânea o fervor religioso entre a população de Bento Rodrigues. Segundo Mara Fantini, que coordena a reserva técnica onde ocorre restauro e guarda do material recuperado, todos os objetos, por menos importantes que possam parecer, são catalogados e apreciados por técnicos e pela comunidade. Foi assim que uma garrafa PET deixada pelo padre com água benta foi encontrada na lama da igreja de Paracatu de Baixo e retornou como que por milagre à comunidade. “Pode parecer uma simples garrafa de água, mas sua sobrevivência ao ocorrido se traduziu em símbolo para a comunidade. E isso ocorreu com muitos objetos que numa primeira análise não teriam tanto valor”, conta. Segundo ela, já estão prontos os projetos executivos para a restauração e reconstrução dos quatro templos atingidos: as capelas de São Bento e Nossa Senhora das Mercês (Bento Rodrigues), de Santo Antônio (Paracatu de Baixo) e Nossa Senhora da Conceição (Gesteira).



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