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Estado de Minas

Transpor barreiras nas ruas e impor-se no trabalho são alguns dos desafios dos cegos

Eles são os deficientes físicos com maior representatividade na população


postado em 04/09/2016 06:00 / atualizado em 04/09/2016 08:21

Fernanda e Francisco em rua de BH:
Fernanda e Francisco em rua de BH: "A impressão que eu tenho é de que as calçadas são feitas para proteger árvores, lixeiras e até para carros, menos para gente", irrita-se ela (foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press )
Sempre que pode, o advogado Francisco da Silva Soares, de 38 anos, faz questão de buscar no serviço a namorada, Fernanda Moreira. “Já chegou, Fernanda?”, provoca o parceiro, rindo. “Sou eu não, Francisco!”, responde ela, bem-humorada. Em seguida, os dois se dão os braços e descem juntos a rampa da Maternidade Odete Valadares, onde a moça atua como psicóloga.

Era para ser uma cena trivial, igual a milhares que se repetem no cotidiano, se não fosse pelo fato de Fernanda ser cega de nascença. Também o namorado, Francisco, deixou de enxergar aos 18 anos, em função de um descolamento de retina. “Nossa vida é uma maratona, enfrentando obstáculos diários nas calçadas, dando braçadas no mundo do trabalho e quebrando nossos recordes a cada momento”, define a mulher, de 39, pós-graduada na área de atuação.

Apenas pelo fato de serem cegos – a deficiência física mais representativa na população brasileira, segundo  dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  –, os dois já chamam muito a atenção por onde passam, com suas bengalas de ponta redonda. O ideal é optar pelo uso de roupas neutras. “A sensação é a de carregar uma melancia constantemente dependurada no pescoço”, diz o advogado, adepto do estilo clássico do vestuário e modos franciscanos.

“Mais que as pessoas que enxergam, temos de ser bem exigentes com nossa aparência”, conta Fernanda, que se sente “tensa” ao se vestir. Se quiser comprar roupa de festa em loja sofisticada, ela sabe que terá de subir no salto e carregar na maquiagem, pois será avaliada de alto a baixo pela equipe de vendas. “O cego é visto como um coitado, que nunca tem dinheiro. Mesmo que esteja devendo no cartão, é bom caprichar na aparência”, compara Fernanda, que discorre sobre moda sem se ver no espelho.

PRECONCEITO
Mesmo estando bem arrumados, cabelos penteados e cores combinando (com a ajuda de um familiar ou de um aplicativo de celular, que informa os tons de roupa por mecanismo sonoro), a pessoa com deficiência precisa comprovar que é competente na função para ser tratada como igual no ambiente de trabalho. “É preciso provar que a gente dá conta, mesmo tendo diploma de pós-graduação. Se não, te deixam largada de lado no serviço público, como uma espécie de carta branca. O preconceito é velado, mas existe”, explica a psicóloga.

Já Francisco assessora um tribunal em BH. No entanto, está na batalha para conseguir o arquivo on-line de um livro da Saraiva, único modo de acessar o conteúdo da obra, que será lido em voz alta pelo computador. Sem isso, não consegue finalizar um trabalho. Em mensagens trocadas com o serviço de 0800 da empresa, o advogado deixa claro que não se trata de favor, mas de obrigação prevista na lei que garante os direitos das pessoas com deficiência visual.

Escolhida a vestimenta, arranjado o emprego e firmado no cargo, é preciso ainda chegar até o local de trabalho, a etapa mais “simples” até agora. Basta traçar um mapa mental, com o nome de todas as ruas e esquinas da cidade por onde se vai transitar, sempre a pé ou de ônibus. Feito isso, é necessário sinalizar na memória onde estarão todos os buracos do trajeto. O pior deles, apontado por Fernanda, está localizado exatamente em cima do piso podotátil exclusivo para cegos, sinalizado por um cone. Quando o casal tenta passar, pedestres acodem, apavorados com a possibilidade de os dois trombarem no obstáculo.

“Caí há uns 10 dias”, conta Francisco, mostrando a canela machucada, arregaçando a perna da calça social marrom. Por dia, ele caminha em torno de cinco quilômetros no trajeto de casa ao trabalho e a mesma distância no caminho de volta: “Somos atletas das ruas”. “A impressão que eu tenho de é que as calçadas em BH são feitas para proteger árvores, lixeiras e até para carros, menos para gente”, irrita-se Fernanda, coordenadora da Comissão de Acessibilidade nos Passeios do Movimento Unificado de Deficientes Visuais (Mudevi), do qual Francisco também participa.

Deficiência física no Brasil

A última Pesquisa Nacional de Saúde, Ciclos de Vida aponta que 1,3% da população, cerca de 2,6 milhões de pessoas, é portadora de deficiência física. Compilados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2013, os dados constatam que 0,3% da população nasceu com deficiência física, enquanto 1% a adquiriu em decorrência de doença ou acidente. Entre os portadores de deficiência, 46,8% tinham, no momento da pesquisa, grau intenso ou muito intenso de limitações, ou ainda não conseguiam realizar as atividades habituais. Estimou-se que 18,4% dos deficientes físicos frequentavam algum serviço de reabilitação. A deficiência visual é a mais representativa na população, com proporção de 3,6%. Somente 4,8% das pessoas desse grupo disseram frequentar serviço de reabilitação, o menor percentual estimado entre as deficiências pesquisadas.

Propostas de mobilidade

Para a Comissão de Acessibilidade nos Passeios do Movimento Unificado de Deficientes Visuais (Mudevi), a regra para as calçadas de Belo Horizonte poderia até ser universal, sem que houvesse a necessidade de beneficiar um único grupo com a instalação de faixas podotáteis exclusivas para deficientes visuais. “Da maneira como estão instaladas, melhor que nem existissem”, criticam Fernanda e Francisco, integrantes da Mudevi. Eles lembram que os parâmetros estão sendo revistos por intermédio do concurso Acessibilidade para Todos, que tenta encontrar novas soluções para requalificar os passeios e pontos de ônibus na capital mineira.

Há cerca de seis meses, Fernanda e Francisco seguiram sozinhos para Madri (Espanha), por conta própria e sem o apoio de um vidente (pessoa que enxerga) ou mesmo de companhia turística. “A sensação de liberdade, de autonomia mesmo, é muito grande. Embora só haja piso podotátil nas esquinas, em Madri, a segurança para andar é muito maior. A gente não se sente preocupada o tempo inteiro, com medo de se machucar, pois todos os passeios são retos, lisos e sem obstáculos”, afirma Fernanda, lembrando que é proibida a instalação dos chamados mobiliários urbanos (lixeiras, postes e orelhões) na área de trânsito de pedestres. Segundo o Código de Posturas, as calçadas devem ter piso tátil em alto-relevo e rampas.

O movimento defende que, se mantidas, as faixas para cegos em BH sejam restritas a uma pista única, rente ao muro. Para Fernanda, a existência de duas faixas, prevista no modelo antigo, acaba confundindo o deficiente visual mais do que ajudando. Outra reclamação é quanto à falta de semáforos sonoros para pedestres na capital, que facilitem no momento de atravessar as ruas. “Mais uma vez, temos de lembrar o exemplo de Madri, onde passarinhos começam a ‘cantar’ quando abre o sinal. Perto de fechar, os passarinhos cantam mais rápido”, explica Francisco, lembrando que a Organização Nacional de Cegos da Espanha (Once) é um dos movimentos mais organizados do mundo.


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