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Estado de Minas

Minas Gerais chegou a receber o maior número de pacientes de hanseníase do Brasil

Chamados pejorativamente de morféticos, portadores de hanseníase não se limitavam à ex-Colônia Santa Isabel, em Betim. Pacientes eram internados no interior de Minas


postado em 22/09/2015 06:00 / atualizado em 22/09/2015 08:06

Da Colônia São Francisco de Assis, em Bambuí, restaram portões em ruínas e pavilhões desativados: pacientes foram liberados em 1986(foto: Leandro Couri/EM/D.A Press - 18/09/2012)
Da Colônia São Francisco de Assis, em Bambuí, restaram portões em ruínas e pavilhões desativados: pacientes foram liberados em 1986 (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press - 18/09/2012)

"Na escolinha da Fiat, os colegas perguntavam se eu era da cidade onde os meninos tiravam os dedos e jogavam nos outros" - Erni de Souza, ex-morador da antiga Colônia Santa Isabel


Um dos maiores entusiastas da abertura dos portões da ex-colônia, Erni vai ser sempre lembrado como um defensor do Citrolândia. Sua morte, em abril deste ano, dois meses depois da entrevista ao EM, trouxe comoção entre os antigos moradores do bairro. Um dos precursores do movimento, ele havia sido levado para a Santa Isabel com a avó, que “já não tinha mais um dedinho nas mãos”, e com a mãe dele. Na época, era difícil cuidar de uma moléstia para a qual não havia cura. Em média, morriam até seis pessoas por dia. Sem sinais aparentes do mal de Hansen, Erni era um dos 46 sobreviventes do pavilhão masculino. Mesmo sem ter uma única mancha na pele, sofria apenas por morar em Santa Isabel. Os olhares dos estranhos batiam diferente para ele: “Doíam mais do que um tapa na cara”.


A dor e o sofrimento trazidos pela doença milenar cujo nome antigo tem apenas cinco letras, mas ecoa pior do que xingamento, não se restringiram ao território da ex-Colônia Santa Isabel, em Betim, na Grande BH. Minas Gerais chegou a receber o maior número de pacientes no país, chamados pejorativamente de morféticos, dedinhos, lazarentos e outros palavrões. A partir da década de 1930, o estado receberia oficialmente a instalação de outras três colônias distribuídas no interior mineiro (Ubá, Três Corações e Bambuí, além de Betim) e que ainda resistem ao tempo, com a nova função de casas de Saúde, mantidas pela Federação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Poucos sabem, entretanto, que o município de Sabará, também na região metropolitana, chegou a abrigar no passado a ampla estrutura do ex-Sanatório Cristiano Machado, voltado para atender hansenianos de maior poder aquisitivo, capazes de pagar pelos serviços de hotelaria em estilo cinco estrelas, com direito a cassino, salões de baile e total garantia de anonimato.


“Aqui era dos doentes mais ricos. É tanto que o hospital nem tem enfermaria. Os quartos eram ventilados e ensolarados, com uma vista bonita para o Rio das Velhas (que ajudava a isolar os pacientes). Em outro sítio, a alguns metros dali, eram internados os mais carentes, no Ernani Agrícola”, revela o cirurgião-geral Alcino Lázaro, de 89 anos, que ainda atua no lugar onde existia o antigo sanatório. O médico defende implantar um hospital-escola nas instalações ociosas, voltado a ensinar a prática das cirurgias ambulatoriais a estudantes de medicina. “Precisamos de patrocínio para criar ali um centro de medicina experimental”, diz o nonagenário, de saúde invejável, que atende diariamente em seu consultório em BH e foi nomeado membro da Academia Brasileira de Medicina.

Nas luxuosas instalações do então sanatório, há estruturas atualmente reformadas para atender ambulatorialmente à população de Sabará, além de marcos da antiga construção, inaugurada em 1946, que completará 70 anos em setembro do ano que vem. Nas extremidades do prédio horizontal, persistem os solários, bem ventilados para ajudar na recuperação dos doentes. Com a abertura dos portões das ex-colônias brasileiras, em 1986, os pacientes restantes que ainda estão vivos retornaram ao convívio familiar ou mudaram para outros endereços. A reportagem do EM tentou ter acesso a essas pessoas, mas nenhuma delas aceitou dar entrevista sobre o assunto, cercado de estigma e preconceito. No lugar, está apenas o interno José., de 72 anos. Senil, o homem permanece bem cuidado no hospital, deitado em uma cama e sem receber visitas.

LEMBRANÇAS “A clientela era de cerca de 40 pessoas, que podiam pagar pelo atendimento. Aqui viveram professores, advogados e até políticos. Eles evitavam falar sobre suas origens e reconstruíam suas vidas aqui em Sabará. Atendi um que dizia ter sido prefeito no interior”, afirma a funcionária Mônica Adelaide. E completa: “Era uma casa de pacientes diferenciados, como a menina do violino, que mais tarde ficaria toda sequelada”.

Outra funcionária, que pede para não ser identificada, veio com os pais de Caratinga para morar em Sabará. “Mamãe nunca abandonou meu pai, que era hanseniano. Veio morar aqui com ele e, depois de ter tido três filhos, acabou adoecendo também. Meu parto foi aqui, na Ala C, mas me mandaram para casa da minha madrinha”, diz a mulher, que voltou a residir no sanatório, onde está até hoje, responsável pelo setor de hotelaria. “Cheguei a ver o cassino funcionando. Apesar de tudo, as pessoas daqui eram alegres.”, relembra.

Cirurgião-geral Alcino Lázaro, de 89 anos, ainda atua no ex-sanatório Cristiano Machado, em Sabará:
Cirurgião-geral Alcino Lázaro, de 89 anos, ainda atua no ex-sanatório Cristiano Machado, em Sabará: "Aqui era dos doentes mais ricos" (foto: Beto Novaes/EM/DA Press)

Caravanas de solidariedade


“Por ser lugares estigmatizados, as ex-colônias tornaram-se refúgio de pessoas com doenças de toda sorte, onde todos são aceitos, como os filhos desgarrados da hanseníase, portadores de HIV e dependentes químicos. Ninguém aqui é excluído”, afirma Alexandre Rodrigues, de 56 anos, voluntário do Núcleo Beneficente Mirandinha (Nubem), no Bairro Citrolândia, em Betim, que há mais de 20 anos faz trabalhos sociais no lugar, a ponto de adquirir uma moradia onde está sediada a entidade.

Assim como Alexandre, caravanas inteiras de solidariedade, ligadas ou não a diversas religiões, visitam a ex-Colônia Santa Isabel todos os fins de semana, com a missão pessoal de socorrer parte dos cerca de 30 mil habitantes que moram nas imediações do Citrolândia. O grupo espírita atende a mais de 70 crianças com quadro de desnutrição, de famílias ribeirinhas ao Paraopeba. “Quem vem aqui na ex-colônia, sempre volta”, diz Gustavo Capanema, um dos 46 internos do Pavilhão.

Neste mês está aberto o debate sobre o destino das ex-colônias de hanseníase de Minas, localizadas em Bambuí (Casa de Saúde São Francisco de Assis), Três Corações (Casa de Saúde Santa Fé), Ubá (Casa de Saúde Padre Damião) e Santa Isabel, em Betim. Além da miséria, as ex-colônias sofrem pressão para se emanciparem dos cuidados prestados há décadas pelo Estado, responsabilizado pela política de isolamento dos pacientes no passado.

Série do EM 
mostra que estigma ainda persiste

As reportagens “Chagas ainda abertas” e “Famílias divididas ao meio”, publicadas no domingo e ontem no Estado de Minas, fazem parte da série Marcas do Passado, iniciada em agosto. Naquele mês, as matérias enfocaram a tuberculose, moléstia do século passado que voltou a assombrar o Brasil. A série agora é sobre a hanseníase. Sobreviventes da antiga Colônia Santa Isabel, em Betim, na Grande BH, relatam que, 29 anos depois da abertura dos portões, o estigma que acompanha a doença ainda persiste, assim como o isolamento e o preconceito. As reportagens trazem ainda entrevistas com os artistas Ney Matogrosso e Elke Maravilha, que preferem pronunciar a palavra “lepra” para chamar mais atenção das pessoas e do poder público para a enfermidade. O drama dos pais que tiveram filhos arrancados de seus braços para serem colocados em creches e internados também é relatado pelo EM.


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