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Estado de Minas

Conheça o drama de portadores de hanseníase afastados dos filhos

Pais portadores de hanseníase tiveram seus filhos arrancados dos braços pelo governo. Calcula-se que cerca de 40 mil crianças e adolescentes foram para creches e internatos


postado em 21/09/2015 06:00 / atualizado em 21/09/2015 07:27

Antônia Barroso exibe a foto da filha, Inês, que ela só conseguiu reencontrar muitos anos depois(foto: Beto Novaes/EM/DA Press)
Antônia Barroso exibe a foto da filha, Inês, que ela só conseguiu reencontrar muitos anos depois (foto: Beto Novaes/EM/DA Press)

"Pedia a Deus todos os dias para ficar doente e, com isso, poder ficar junto da minha mãe dentro da colônia" -
Zenaide Silva, de 69 anos, internada desde os 11

Famosa pelos quitutes, a salgadeira Zenaide tinha apenas 8 anos quando a família recebeu a visita da polícia sanitária, em Juiz de Fora, na Zona da Mata. “Buscaram só ela. Eu, meu pai e meu irmão ficamos para trás”, lamentou a menina, levada todo mês pelo pai para fazer o exame de detecção da hanseníase. Ao chegar do serviço, o pai examinava atentamente as duas crianças, tentando encontrar sinais da doença.  “Quando tinha 10 anos, finalmente apareceram carocinhos atrás da minha orelha. Fiquei alegre, porque morria de saudades da mamãe. Tudo o que eu queria era estar perto dela.”

Uma crueldade comparável à cometida pelos nazistas em seus campos de concentração na Segunda Guerra Mundial. No Brasil, calcula-se que pelo menos 40 mil crianças e adolescentes foram separados dos pais, portadores de hanseníase, e levados para creches e educandários espalhados pelo país, numa prática que perdurou até 1986, apesar de a descoberta da cura da doença ter ocorrido na década de 1940. As internações continuaram por quase 50 anos, portanto, sem necessidade. Enquanto no Japão as mulheres portadoras de hanseníase eram obrigadas a abortar, no Brasil elas tiveram os filhos arrancados dos braços logo depois do parto. Há relatos de que as parturientes nem sequer tinham direito de ver o rosto das crianças, como forma de evitar o vínculo familiar com o bebê e o contágio pela doença incurável.

Essas crianças tornaram-se órfãs de pais vivos por imposição do Estado, muitas vezes em situações que envolviam esquemas irregulares de adoções e maus-tratos pelos funcionários das chamadas pupileiras, onde ficavam até atingir a idade de migrar para os educandários. “Teve uma época em que as funcionárias faziam ruindade com a gente. Batiam mesmo. Quando era Dia das Crianças ou Natal, apareciam umas senhoras da caridade trazendo brinquedos para a gente. As crianças eram obrigadas a agradecer e sorrir para elas. Quando as madames viravam as costas, elas tomavam de nós as bonecas. Uma vez implorei de joelhos para ficar com uma das bonecas. A mulher tomou ela da minha mão, cortou os dedinhos dela e me devolveu. Era covardia demais”, relata sem conter as lágrimas Maria das Dores Moreira, atualmente com 53 anos. “Toda vez em que eu conto a minha história, eu choro. Faz bem chorar”, completa.

Conhecida internamente como Dadá, Maria das Dores era ex-interna da Pupileira Hernane Agrícola, no Bairro do Horto, na Região Leste de BH. No lugar, eram permitidas visitas das mães, desde que fosse mantida distância mínima de 100 metros, separadas por cerca de arame farpado. Mesmo assim, a mãe de Dadá levou dois anos até conseguir localizar a filha e ter autorização para visitá-la. “No dia da visita, minha irmã conseguiu contrabandear o retrato da nossa mãe por baixo da cerca. Tenho a foto guardada até hoje”, revela Dadá. “Só assim me lembro do rosto da minha mãe, Maria Piedade da Silva”, diz ela, tirando da pasta de elástico a foto surrada da mulher, de semblante esquecido no tempo.

Passados quase 90 anos desde a inauguração de Santa Isabel, em 1931, filhos e netos de portadores da doença estão dispostos a revelar detalhes de suas histórias, que beiram o desespero. Os depoimentos são estarrecedores. Sob o estigma da lepra, gerações inteiras cresceram sem colo de mãe, laços de família foram cortados e irmãos viveram como estranhos. “Quando contei meu caso, o (então presidente) Lula chorou junto comigo”, conta a moradora da ex-colônia Antônia Barroso, hoje com 80 anos. Em 2007, dona Antônia estava presente na delegação de 130 pessoas ligadas a movimentos de luta pelos direitos dos hansenianos que foram a Brasília para forçar uma agenda com o presidente.

No Palácio do Planalto, Antônia relatou sua espinhosa trajetória de vida. Há quase 40 anos havia sido levada à força de casa e internada pela polícia sanitária. Havia sido denunciada pela mãe, que se negou a conviver com Antônia e nunca visitou a filha. Na época, ela estava grávida. Ao saber do diagnóstico de hanseníase, o marido cometeu suicídio poucos dias depois. A filha do casal nasceu na colônia, mas não chegou sequer a ser posta nos braços da mãe. No mesmo instante, foi enviada para um preventório e adotada clandestinamente. O reencontro entre as duas demorou 35 anos para acontecer. “Acho que ninguém sofreu mais do que eu em Santa Isabel”, diz ela, como se fosse possível medir a dor.

Veja depoimentos dos ex-internos da colônia em Betim


Vida hoje é melhor

“Hoje isso aqui é o céu. A gente pode se arrumar e sair para passear em Betim. Mas nossas saídas ainda são solitárias por causa do preconceito. Se você pede um café na lanchonete e o atendente repara na sua mão esmirrada, ele joga o copo fora”, conta, com uma ponta de tristeza, Severiano Sousa, de 77 anos, um dos 46 pacientes crônicos de hanseníase da antiga Colônia Santa Isabel. Cercados por familiares e amigos que se mudaram para o Bairro Citrolândia, com o fim da política de isolamento, em 1986, eles ainda moram na instituição por ter contraído o bacilo antes da descoberta da cura da doença e, portanto, sofrerem sequelas no corpo.

Na condição de internos, recebem do estado atendimento preferencial de saúde, transporte interno gratuito e alimentação. Depois da reparação governamental, recebendo indenização, muitos se dão ao luxo de recusar a comida do hospital e encomendar marmitas em Betim, para variar o cardápio. “Com a indenização, poderia me mudar para qualquer lugar do Brasil, pois conheço a lei e poderia processar quem tentasse me discriminar. Mas aqui é meu segundo mundo”, afirma um interno, que pede anonimato. “A pensão vitalícia me deu condições de ter uma vida mais digna”, completa.

Outros aproveitaram o valor da indenização acumulado entre o período de internação até 1986 para investir na reforma das casas construídas em Citrolândia, trocar de carro ou ajudar os filhos. Segundo os relatos, os valores variaram de R$ 2 mil a R$ 150 mil, proporcionais ao tempo de internação. “Nosso desafio é continuar prestando assistência de qualidade aos portadores da doença e garantir que, daqui a mais 30 anos, 60 anos, nossa história chegue às gerações futuras”, defende Arthur Custódio, presidente do Mohran nacional.


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