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Estado de Minas

Poliglota, ex-faxineira do Mercado Central ganha a vida em fábrica de tijolos


postado em 25/02/2014 06:00 / atualizado em 25/02/2014 16:37

A máquina cospe 30 tijolos a cada dois minutos e a rotina de Maria da Conceição, que ganha R$ 740 por mês, é transportá-los em um carrinho de mão até as pilhas de secagem(foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)
A máquina cospe 30 tijolos a cada dois minutos e a rotina de Maria da Conceição, que ganha R$ 740 por mês, é transportá-los em um carrinho de mão até as pilhas de secagem (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)

Em ano de Copa do Mundo, antevéspera da Olimpíada, em um país de raros poliglotas que precisa incrementar o turismo, quanto vale uma mulher de 43 anos, 1,69m, 51kg, que domina fluentemente cinco idiomas, incluindo o português, e, sem tanta fluência, se comunica em outros dois? Para o Mercado Central de BH, de onde foi dispensada há sete meses, não mais que R$ 1 mil por mês. Para o dono de uma cerâmica no Bairro Paquetá, em Betim, na região metropolitana, apenas R$ 740 mensais, e sem carteira assinada. Entre montanhas de argila e máquinas de prensar o barro, a poliglotia de Maria da Conceição da Silva não tem a menor serventia. Por isso, se quiser receber no fim do mês precisa, literalmente, botar a mão na massa.

Natural do Recife (PE), filha de doméstica, mãe presente, e de caminhoneiro, pai ausente, Maria da Conceição da Silva tem trajetória semelhante à de incontáveis nordestinos que não viram oportunidades na terra natal e a deixaram para encarar o mundo. Antes de pegar a estrada, ou melhor, um avião, trabalhou na construção civil, em loja de autopeças, em manutenção de computadores e se formou em contabilidade. Até na mecânica se aventurou. Perambulou pela Europa, mais precisamente Holanda e Alemanha, onde aperfeiçoou o inglês, além de aprender espanhol, italiano, holandês e um tanto de alemão e hebraico.

Veio para a Grande BH há dois anos atraída pelo amor. Perambulou em busca de emprego, mas enfrentou preconceito e descrença, até o dia em que entrou no Mercado Central, em fevereiro do ano passado, para comprar goma de tapioca. Lá, precisavam de faxineiras. Candidatou-se e preencheu uma das vagas para ganhar um pouco mais que o salário mínimo. Um dia, um dos colegas da limpeza a viu falando ao celular de maneira incompreensível para ele. Procurou o superintendente Luiz Carlos Braga e denunciou: “Uma das faxineiras está ao telefone falando uma língua maluca”. Conceição foi chamada ao escritório. Explicou-se e ganhou uma vaga de atendente no guichê turístico do mercado.

A promessa é que o salário seria corrigido a uma faixa compatível à nova função. O mercado não conseguiu cumpri-la e, depois de seis meses de trabalho, Maria da Conceição foi dispensada. Ela preferiu assim. Enquanto estava a serviço de turistas, recebeu propostas de hotéis de Paraty (RJ), do Rio e de Recife, mas a preferência era por BH, pelo mercado. Saiu novamente a campo. Espalhou o currículo por hotéis, restaurantes e empresas em busca de trabalho, work, trabajo, lavoro, werk, e nada. Para sobreviver, aceitou emprego temporário na cerâmica, como servente. O trabalho é pegar tijolos prensados pela máquina, em uma esteira rolante, e levá-los de carrinho até as pilhas de secagem. A máquina cospe 30 unidades a cada dois minutos. É preciso rapidez e delicadeza para não danificá-los.

Sem recordações

Do Nordeste, Maria da Conceição só guarda saudade da mãe, que morreu no início dos anos 1990. Não há como guardar boas recordações de uma infância de privações, de ver a família dispersada pela necessidade, pois a mãe, sem apoio do marido, teve que doar os filhos para não vê-los com fome. Sorte da Conceição é que, no caso dela, a mãe se arrependeu e a pegou de volta para uma jornada difícil que a menina teve de ajudar a superar, iniciando-se no trabalho já aos 10 anos. E carregar tijolo não é para ela uma tarefa penosa. Está acostumada a pegar no pesado.

Nos tempos de Mercado Central, a experiência bem-sucedida na recepção de turistas, função que, segundo ela, não teve remuneração condizente(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press - 23/5/13)
Nos tempos de Mercado Central, a experiência bem-sucedida na recepção de turistas, função que, segundo ela, não teve remuneração condizente (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press - 23/5/13)

Aprendizado na Europa
Maria da Conceição foi para a Europa em 2005, atraída por um espanhol, um alemão e uma holandesa que conheceu no Nordeste. Mas não embarcou só. Homossexual assumida, levou a companheira, mineira de Betim, fruto de um relacionamento que nasceu nas redes sociais. Foi bem recebida na Holanda e orientada a estudar línguas. “Um marroquino maluco me ensinou um pouco de hebraico.” Fez de tudo por lá. De faxina a instalação de pisos de cerâmica. Um dia, a companheira precisou voltar, a chamado da família, e Maria da Conceição veio junto para perambular por BH até entrar no Mercado Central, porta que supunha aberta para outro mercado, mais amplo, o de trabalho.

“Realmente, era nossa intenção melhorar o salário dela, mas não havia um cargo aberto para aproveitá-la no que ela sabe fazer, que é receber. Teríamos que mexer em toda a nossa estrutura salarial, no plano de cargos e salários, daí a rescisão”, diz o superintendente do Mercado Central, Luiz Carlos Braga. Um desenlace amigável. “Por ter acreditado na promessa do mercado, perdi oportunidades. Queria ficar lá, gostei”, conta Maria da Conceição. Há quem pense que a reivindicação salarial está ligada à vaidade, que ela mudou depois que se tornou notícia nacional. A resposta vem em tom de sinceridade: “Será que foi? Quem quer aparecer se esconde? Moraria onde eu moro? Trabalharia onde trabalho?”.

Maria da Conceição tinha argumentos para resistir aos R$ 700 ou R$ 1 mil que ganhava no mercado. Entre os quais, o fato de morar longe e, para recepcionar pessoas, precisava andar bem vestida e maquiada. Isso tem custo. Na cerâmica, perto de casa, nem de ônibus precisa. Além disso, a baixa remuneração desqualifica o profissional. E teve de desempenhar a função no mercado enfrentando a ira do Sindicato dos Guias Turísticos. “Fui alertada. Disseram que, por não ser diplomada em turismo, não poderia acompanhar turistas em caminhadas pelas lojas. Cheguei a levar alguns do mercado até o Minascentro, em frente, a pedidos. Meu trabalho se resumia, segundo eles, a dar informações no guichê.”

No mercado, ganhou da Belotur um curso de informações turísticas. “O conteúdo era sobre os recursos turísticos de Minas Gerais. Muito bom, porque o turista estrangeiro é objetivo, exige informações precisas, e quem os recebe deve estar bem preparado. Além disso, tratar com pessoas requer tato, delicadeza. O turista não quer apenas informações sobre história, cultura. Quer saber também de transporte, se há ônibus, avião, onde pegar táxi, onde se hospedar e comer.” Com toda essa bagagem, por que não consegue um emprego condizente com o currículo? Maria da Conceição não fala em preconceito, mas em resistência à aceitação. “Aqui, a cabeça das pessoas se fecha. Se não houver uma indicação…”

E por que não foi embora, tentar a sorte em outro lugar? “Hoje, preciso de um porto seguro. E o meu, por enquanto, é aqui. Cheguei a ir ao litoral, mas não encontrei trabalho que desse segurança. Além disso, não estou sozinha. Tenho uma companheira, que trabalha como segurança patrimonial, que também precisa de emprego. Mas está difícil. Espalhei meu currículo e a única resposta que recebi via e-mail foi que, apesar das minhas qualificações, a empresa não se interessava em contratar alguém conhecida nacionalmente.” Só porque foi personagem de reportagens em jornais e na TV? Maria da Conceição deixa o endereço de e-mail para quem estiver interessado em seus conhecimentos: conceicaoleeuw@gmail.com.

 


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