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Estado de Minas

Mineiros de Ouro: Arte de fazer a roda cantar

Aposentado que já construiu carros de boi, veículo usado na ocupação dos sertões e cultuado no interior do estado, fala do ofício e diz que está disposto a ensinar


postado em 03/08/2013 06:00 / atualizado em 03/08/2013 07:06

Altamiro de Paula Ribeiro:
Altamiro de Paula Ribeiro: "Estou pronto para ensinar a quem quiser aprender. As ferramentas eu tenho. A pessoa não pode medir distância para aprender" (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)


O cantor, compositor e repentista baiano Caxangá, já falecido, que fez história também como apresentador no rádio mineiro, cantava assim: “Eu sou ferreiro, carpinteiro e carapina, quero que você me ensina a lavar roupa sem molhar”. Ao ouvir os versos do artista popular, Altamiro de Paula Ribeiro, personagem do bem-querer do povo do município de Ibertioga, na Região Central do estado, abre um largo sorriso e diz: “Difícil essa aí, de lavar roupa sem molhar, né?”. Com as mãos, é difícil mesmo. Talvez impossível. Tanto que ninguém nunca apareceu diante de Caxangá para ensiná-lo.

Altamiro, de 64 anos, ou simplesmente Tatá, se não sabe lavar roupa sem molhar, malha o ferro e forja peças, como faz o ferreiro; sabe carpinteirar, e bem; e marceneira como ninguém. São apenas algumas de suas habilidades. Há outras, como a que o fez famoso: construtor de carros de boi, aqueles de madeira, pesados, de rodas cantadeiras, puxados por juntas (parelhas) de bois, os chamados bois de carro, fortes, calmos e obedientes. Arte que Tatá aprendeu com o pai e que vê morrer, devagar, porque não há mais ninguém disposto a segui-la.


Se hoje o carro de boi é um veículo alegórico, reverenciado todos os anos, em julho, em Ibertioga, sem ele a ocupação de certos sertões mineiros seria impossível. Não há como imaginar o surgimento de povoados e grandes fazendas de café e de gado naqueles tempos em que não havia caminhões e tratores sem um meio de transporte. Se as tropas de burros e mulas eram para cargas leves, os carros de boi eram para o serviço pesado, grandes quantidades de sacarias e móveis, além de pedras, areia, madeira e adobe para a construção dos casarões. Era bonito vê-los gemendo morosamente no fim do estradão.

Geraldo Paulino Ribeiro, pai de Tatá, como tantos outros nas quebradas de Minas que talharam o jacarandá para dar conta das encomendas de fazendeiros e empresas que principiavam a ocupação de terras, são, imerecidamente, anônimos. Imerecidamente porque hoje o carro de boi é reverenciado em festas e desfiles, não somente em Ibertioga. Pela sua importância e tradição. Ser dono de um, de rodas cantadeiras, é como ter na garagem um Ford picape fabricado em 1929. E não tem preço. Se a arte de construir carro de boi não é mais atraente, madeira de lei agora, como o jacarandá, é coisa rara.


Tatá começou na labuta cedo, como a maioria naqueles tempos. Aos 8 anos já ordenhava vacas, na profissão chamada retireiro. E tinha que levar o leite à fábrica de laticínios. Aos 10, começou a ajudar o pai a fabricar carros de boi. E foi observando o trabalho de Geraldo Paulino. Daí até aprender a arte foi um pulo. Mas não é um ofício simples. Um carro de boi exige a meticulosidade de um projetista de automóvel. Questão de milímetros. Um errinho de nada no desenho do mião (roda) ou na romã do eixo, o carro fica comprometido, principalmente por um detalhe. “Carro que não canta vira carroça”, diz Tatá.


Milimétrico

Tatá começou na labuta cedo, como a maioria naqueles tempos. Aos 8 anos já ordenhava vacas, na profissão chamada retireiro. (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)
Tatá começou na labuta cedo, como a maioria naqueles tempos. Aos 8 anos já ordenhava vacas, na profissão chamada retireiro. (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press.)
Para não cometer erros, é preciso destreza no manejo da serra, do serrote, da enxó, do grupião, da plaina, da pua, do prumo, da lima, da grosa, só para falar de algumas ferramentas. Por isso é importante ser, no mínimo, carpinteiro e carapina. Para cantar, o eixo é untado com azeite de mamona. “É uma arte que, infelizmente, está acabando. Antigamente, no festival de carros de boi aqui em Ibertioga, desfilavam pelo menos 100. Na última, agora em julho, havia no máximo 15”, conta Tatá. Ele participou da festa durante anos. “Todos os anos desfilava com um carro cheio de milho. As pessoas levam prendas, que são leiloadas em benefício da paróquia”.


“O trator com carretinha substituiu o carro de boi nas fazendas”, diz, para explicar um dos motivos pelos quais o ofício deixou de ser atraente. Não só os tratores. Os caminhões também. Não há mais demanda. “Meu pai criou três filhos e eu cinco com esse trabalho.” Tatá, como tantos outros criados no interior das Gerais, estudou só até a terceira série (correspondente ao terceiro ano do ensino fundamental) porque tinha que trabalhar para ajudar os pais. Aposentou-se, com pensão hoje de R$ 675. Para sobreviver com a mulher, complementa a renda com o dinheiro da venda do leite ordenhado de uma dúzia de vacas.


“Hoje, mesmo se quisesse, não conseguiria mais construir um carro de boi. É preciso trabalhar muito tempo agachado e não teria mais a ajuda de minha mulher, que sofreu um derrame e ficou com os movimentos prejudicados. Tenho orgulho de ter aprendido essa arte e de saber fazer. Estou pronto para ensinar a quem quiser aprender. As ferramentas eu tenho. A pessoa não pode medir distância para aprender.” A lição é boa. E aprender foi também um ofício para Tatá. Tanto que, além de construtor de carros de boi, carapina, marceneiro e retireiro, faz serviço de pedreiro e sabe plantar e colher. Vida longa para Altamiro de Paula Ribeiro. E que o carro de boi não desapareça do cenário das Minas Gerais.

 

Serviço
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