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Estado de Minas

A difícil dor da existência

Ausência de capacitação para profissionais da saúde lidar com o suicídio e falta de políticas públicas preventivas no Brasil somam-se às subnotificações do fenômeno social, com 1 milhão de mortes no mundo por ano


postado em 31/03/2013 00:12 / atualizado em 31/03/2013 07:56

Dez mil pessoas tiram a própria vida no Brasil anualmente, segundo dados do Ministério da Saúde. No mundo, o total chega a 1 milhão, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS). Esse número, de acordo com a Sociedade Brasileira de Psiquiatria (SBP), é subestimado e pode ser de 20% a 30% maior, por razões várias, inclusive devido a subnotificações junto aos órgãos de saúde e segurança pública dos municípios. Os coeficientes de mortalidade são três a quatro vezes maiores entre pessoas do sexo masculino. A questão social está ligada a diversos fatores, mas, mais intimamente ligado a distúrbios psiquiátricos. Muito associado a idosos, nos últimos 30 anos o ato de atentar contra si ronda pessoas mais jovens. Dados da SBP indicam que há dois grupos de risco: o jovem entre 15 e 30 anos e o idoso, acima de 65.

“Os  médicos fora da psiquiatria (e mesmo algumas equipes da área) não estão preparados para lidar porque existe um tabu, não falam, não comentam e não estudam o fenômeno do suicídio. Fingem que o problema não existe e essa atitude gera reflexo na formação acadêmica dos profissionais, pois o assunto fica relegado a um segundo plano”, aponta o presidente da Comissão de Prevenção ao Suicídio da SBP, o professor titular de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Humberto Correa, para quem o suicídio ainda é considerado tabu na sociedade.

“Suicídio é todo ato provocado conscientemente pelo indivíduo com a intenção de provocar a própria morte. Há pessoas que tentam ou têm muito desejo de se matar, mas não conseguem e esse ato é erroneamente interpretado como necessidade de chamar a atenção de alguém. Toda tentativa de tirar a própria vida deve ser levada a sério”, acrescenta Correa.

Aquele que se mata, invariavelmente, demonstrou, pelo menos uma vez, ideias de morte, comunicadas a pessoas próximas, inclusive ao médico que o atendia. Quando a pessoa diz que pensa em se matar, é um sinal de alerta. “Temos a tendência de não valorizar esse sinal, achando ser uma forma de a pessoa chamar a atenção. Há um mito de que, quando a pessoa fala em se matar, é porque não quer fazê-lo. Daqueles que se suicidaram, entre 70% e 80% comunicaram ou falaram sobre isso a parentes”, afirma o psiquiatra, para quem o suicídio é algo que pode ser prevenido. Segundo Correa, as pessoas tendem a se matar usando o meio de mais fácil acesso (um policial pode se matar usando a arma de fogo, na zona rural é comum o uso de pesticidas). “Restringir e controlar métodos letais é também uma forma de prevenção.”

Há algumas circunstâncias que podem ser observadas: primeiramente quase 100% dos quem têm tendência suicida ou de fato se matam têm algum distúrbio psiquiátrico. “Entre essas circunstâncias, em termos absolutos primeiro vem a depressão, mesmo que em termos relativos o diagnóstico de paciente bipolar aponte para um maior número de pessoas que se suicidam”, explica Correa. Transtornos do humor, depressão, transtorno bipolar, o uso e abuso de álcool e outras substâncias, a esquizofrenia, o  transtorno de personalidade, quase todos esses transtornos estão associados a altos níveis de mortalidade por suicídio.

Para a médica e psicóloga Vera Zavarise, o pensar sobre si leva também ao direito de não querer viver. Ela cita o caso do ator Walmor Chagas, que tirou a própria vida recentemente, como um ato lúcido de quem percebe não ter mais condição de viver com qualidade e toma uma decisão. “Esse é um suicídio da autonomia, da liberdade do sujeito com a vida. Cada vez mais o homem sabe que tem o direito a viver ou morrer.”

Vera acredita, que entre outras razões, que esteja aumentando o número de suicídios em função da depressão. “Pensar em suicídio é inerente a todas as depressões. Pensar e depois executar o ato se aplicam para alguns casos. Em torno de 10% das pessoas tentam e conseguem tirar a própria vida.”
A médica diz que há algo mais forte que impede que alguns sintomas se manifestem ou sejam percebidos, que é o preconceito de precisar de alguma ajuda para algo que é psíquico. “As doenças psíquicas geralmente são associadas ao cérebro como  algo mágico, à alma da cabeça, mas que, na realidade, não é alma e sim um órgão (o cérebro) como qualquer outro, que submetido a um desgaste maior pode apresentar um certo desequilíbrio de funcionamento. Nesse caso há uma área específica que é o humor. E, existe o preconceito de buscar um psiquiatra, como algo que custa caro, e quem está próximo não tem coragem de sugerir a procura de um especialista. Há outros fatores como uso de algumas medicações que acabam induzindo à depressão, como a facilidade do uso de ansiolítico, que deve ser por tempo determinado. Ele pode abaixar a ansiedade num primeiro momento, mas no uso extenso pode levar à depressão”, explica a médica.

Tratamento deve ser voltado para cada caso

O tratamento para doenças que levam ao suicídio – como a depressão e o transtorno bipolar – é diversificado e individualizado, e cada caso deve ser avaliado para se ter um tratamento adequado (que pode ir de consultas psiquiátricas, psicoterapia breve, entre outros, associados ao uso de medicamentos). “Alguns países estabelecem uma estratégia nacional de prevenção ao suicídio com o tratamento rápido e eficaz da depressão”, sugere o médico Humberto Correa. No Brasil, segundo ele, quase não há políticas públicas direcionadas à prevenção ao suicídio. Em Minas, quando um paciente com quadro de tentativa de suicídio é atendido em uma unidade pública de saúde, ele geralmente é encaminhado ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPs) ou Centro de Referência da Saúde Mental (Cersam).

“Essas políticas normalmente estão no bojo do tratamento psiquiátrico oferecido nesses centros.  O investimento em pesquisa na prevenção e no estudo de suas causas, no entanto, é infinitamente inferior tendo em vista a importância do problema. Todo esse tabu impede que se invista em pesquisa, que se fale sobre isso e a mídia não divulga”, explica Correa: “É um assunto que a sociedade joga para debaixo do tapete”.

O que existe de mais concreto para prevenção é o trabalho de uma entidade não governamental, sem fins lucrativos e que trabalha com voluntários, o Centro de Valorização da Vida (CVV). A entidade surgiu na Inglaterra em 1953, para atender voluntariamente pessoas num cenário pós-Segunda Guerra Mundial. A iniciativa foi do pastor anglicano Chada Varah, por meio da entidade “os samaritanos”, de Londres. Hoje, são 165 centros de emergência espalhados pelo mundo, reunindo cerca de 20.500 voluntários. O CVV chegou ao Brasil no início dos anos 1960 e atualmente conta com 60 postos, com cerca de 3 mil voluntários, sendo 58 pessoas atuando em Minas. O CVV atende 24 horas por dia, presencialmente nos postos de referência ou via internet, pelo endereço www.cvv.org.br, cujo atendimento é via chat.

Carmen Ferrari é voluntária há mais de uma década e atualmente ministra cursos de formação a quem está disposto a doar um pouco para os mais necessitados: “O curso mostra os princípios do CVV. Independentemente da formação acadêmica, todas as pessoas em qualquer parte do Brasil estarão trabalhando com as ferramentas da entidade. O curso ensina a usá-las. São muitas, e a primeira é a disponibilidade interna. Não há como abraçar uma causa sem estar preparado emocionalmente”, diz.
Ao voluntário não compete mensurar nem julgar quão verdadeira é a dor do outro. Não importa o fator desencadeante do problema, importa o sentimento. Aquilo que a pessoa não tem coragem de falar para o terapeuta, mãe, pai, amigo ou marido estará protegido pelo anonimato. Ao atender a pessoa ao vivo ou pelo chat na internet, o voluntário não deve sugerir recursos religiosos e ter ciência de que sua função é apenas ouvir.

Existem fatores psicossociais, os chamados laços sociais, que ajudam muito os quadros depressivos. De acordo com o psiquiatra Humberto Correa, quanto mais a pessoa participa de grupos de relacionamentos (se é casada, tem filhos, trabalha, se está ligada a atividades religiosas, políticas, esportivas), ela reduz as chances de atentar contra si. “Do ponto de vista coletivo é importante ter laços fortes em vários setores de sua vida. Aquele que se mata invariavelmente já demonstrou alguma vez ideias de morte e se comunica com pessoas próximas.

Às vezes mesmo com o médico que a atende. Quando ela diz que pensa em se matar, é um sinal de alerta. Temos a tendência de não valorizar esse sinal, achamos que essa é uma forma de chamar a atenção. É um mito de que a pessoa fala em se matar porque não quer fazê-lo, mas entre 70% e 80% de pessoas que se suicidaram falaram disso antes com parentes”, observa o especialista.

Memória

Cada cultura encara o suicídio de uma forma

O autoextermínio sempre existiu em todas as civilizações, inclusive com evidências de suicídio entre povos pré-históricos. Ao longo da história muda-se a forma de encará-lo: em algumas, ele era tolerado, em outras era até estimulado, e em outras reprimido. Na civilização cristã ocidental, no início, era valorizado em certos aspectos. Entre os primeiros cristãos, havia quem se suicidava para chegar mais próximo de Deus. “A partir de Santo Agostinho, nos séculos 4 e 5, isso começou a mudar. Em particular na Igreja Católica, o suicídio passou a ser reprimido, e depois perseguido. A visão católica tornou-se dominante, sendo anexada aos códigos civis das cidades-estado que foram surgindo na Europa. Passou-se a punir quem tentava se matar e os familiares perdiam seus bens. Até o início do século 20, a Igreja Católica não dava a eles o direito a ritos fúnebres como missa e cortejo e eram enterrados em locais exclusivos. “Isso tudo entranhou nas mentes de forma a se tornar um tabu e um pecado, o pior de todos. O reflexo disso é que não há campanhas públicas no Brasil exclusivamente de prevenção ao suicídio, apesar de ser assunto de saúde pública”, pontua o dirigente da SBP, Humberto Correa.


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